Gestão Bolsonaro só concluirá vacinação de prioritários no 2º semestre

Brasil precisa vacinar ao menos 1 milhão de pessoas por dia

Fotos: Alejandra De Lucca V. / Minsal

A negligência da gestão Jair Bolsonaro diante da pandemia de Covid-19 cobra um preço cada vez mais alto aos brasileiros. Com o boicote do presidente e de seu governo à vacinação no País, os grupos prioritários – que somam 77,2 milhões de pessoas – não estarão imunizados antes de setembro, conforme projeções de especialistas.

Na opinião de cientistas ouvidos pelo Estadão, previsões mais otimistas pressupõem que ao menos 1 milhão de indivíduos sejam vacinados por dia. Na última quinta-feira, pela primeira vez desde o início da campanha, o País conseguiu imunizar pouco mais de 1 milhão de pessoas. Na sexta, 2, no entanto, o número voltou ao patamar de 300 mil.

Uma evidência do fiasco do Programa Nacional de Imunizações (PNI), lançado por Bolsonaro, é que o projeto tem capacidade para vacinar mais de 2 dois milhões de pessoas por dia – mas o governo não consegue viabilizar as doses necessárias. Assim, o PNI funciona muito abaixo de seu potencial – e muito aquém do que o Brasil necessita para deixar de ser, com urgência, o epicentro da pandemia.

O erro de Bolsonaro foi não ter garantido a compra de vacinas em 2020, ao contrário do que fizeram Estados Unidos e Europa. Agora, o Brasil tem dificuldades para a aquisição de imunizantes prontos e também de Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) – matéria-prima necessária à produção nacional de vacinas no Instituto Butantan, em São Paulo, e em Biomanguinhos/Fiocruz, no Rio.

Não é à toa que, frequentemente, o Ministério da Saúde revisa para baixo o número de doses a serem entregues ao PNI. A campanha de vacinação já foi interrompida várias vezes por falta de imunizantes. No dia 31, o ministro Marcelo Queiroga voltou a baixar a previsão de entrega de vacinas em abril – de cerca de 40 milhões de doses para 25 milhões. Apesar da incompetência, o governo anunciou que pretendia vacinar 80 milhões de pessoas (metade da população elegível para receber a vacina) até metade do ano – o que é praticamente inviável.

Para especialistas, só seria possível atingir o número prometido pelo governo se a partir de hoje vacinássemos pelo menos um milhão de pessoas por dia de forma continuada, sem reduções ou interrupções. Segundo cientistas, esse fluxo contínuo só deverá estar disponível em setembro, quando Biomanguinhos começa a produzir o IFA da vacina de Oxford/AstraZeneca.

Mesmo esse cronograma pode mudar, já que a assinatura do contrato de transferência de tecnologia entre AstraZeneca e Fiocruz está atrasado há quatro meses. Já pelo cronograma do Butantan, a produção do IFA da Coronavac só deverá ocorrer em larga escala a partir do início do ano que vem.

“Se a gente conseguisse chegar a 1,5 milhão de vacinados por dia, em abril concluiríamos o grupo 1 das prioridades”, diz o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas. “Aí daria para concluir todas as prioridades até agosto, setembro – e o restante da população, até o fim do ano. Mas acho pouco provável que isso aconteça porque toda vez que o Ministério da Saúde anuncia uma meta, ele a corrige logo depois.”

“Para metade da população receber uma dose até o meio do ano, teríamos de vacinar, já a partir de agora, 970 mil por dia. Para duas doses, seriam praticamente 2 milhões por dia”, explica o coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt. Para a imunização completa, são necessárias duas doses.

O cenário de incerteza e imprevisibilidade sobre quando novas doses estarão de fato disponíveis impedem um planejamento. “Não sabemos de verdade com o que podemos contar. E é muito difícil trabalhar com essa política de distribuir vacina a conta-gotas”, afirma a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações de 2011 a 2019.

“A falta de um cronograma confiável impede qualquer planejamento adequado”, concorda Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. “Quem está na ponta tem muita dificuldade. Como é que se planeja uma vacinação sem ter em mãos a matéria-prima fundamental, que é a vacina?”, questiona.

Sem insumos, especialistas não confiam nas previsões do governo. “Com as frequentes revisões para baixo em relação à aquisição e oferta de vacinas, é bastante improvável que no primeiro semestre consigamos aumentar (e manter) a velocidade para um patamar que possamos chamar de vacinação em massa – entre 1 milhão a 2 milhões de pessoas vacinadas por dia. Só podemos começar a vislumbrar algo para o segundo semestre”, afirma o infectologista Alexandre Naime Barbosa, da Unesp.

Para os especialistas, o maior erro foi não ter comprado as vacinas quando elas estavam disponíveis, ainda no ano passado. “Houve uma negligência inaceitável por parte do governo federal”, complementa Barbosa.

Especialista em gestão de saúde e integrante do Comitê de Combate ao Coronavírus da UFRJ, Chrystina Barros prevê que só conseguiremos ter vacinação em massa a partir de setembro, quando o Brasil já estará produzindo o próprio IFA e não precisará importá-lo para fazer imunizantes anti-covid-19. “Não temos um cronograma fidedigno”, diz. “Só conseguiremos ter autossuficiência quando Butantan e Fiocruz já tiverem concluído as novas plantas e iniciarem a fabricação do IFA. Só conseguiremos respirar quando tivermos produção própria”, diz.

Além de custar milhares de vidas, a lentidão favorece também o surgimento de novas variantes do novo coronavírus. É o que alerta o virologista e especialista em mutações Fernando Spilki, da Universidade Feevale (RS).

“Com só uma parcela da população imunizada e muita gente suscetível, temos as condições darwinianas para o surgimento e seleção de novas variantes e, com o tempo, o aumento da resistência ao imunizante”, diz ele. “Sem mais vacinas disponíveis, a única forma de fazer isso é com restrição da mobilidade, coisa a que os gestores são refratários.”

Com informações do Estadão