Glenn Greenwald: como Moro pavimentou o caminho para Bolsonaro

Além de prender Lula e o tirar das eleições e dar a Bolsonaro o manto da anticorrupção, as digitais do Moro aparecem já no impeachment de Dilma

Aproveito minha coluna de estreia na CartaCapital, revista que leio desde que cheguei ao Brasil, em 2005, para explicar minha trajetória no jornalismo brasileiro e o que aprendi sobre a imprensa. Essa jornada é inseparável de uma injustiça histórica – o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016 –, cuja importância foi ofuscada pela gravidade dos eventos subsequentes.

Em meus primeiros dez anos no Brasil, evitei comentar política brasileira, mesmo com meu marido, o agora deputado David Miranda (PSOL-RJ), se envolvendo cada vez mais em sua militância. O meu jornalismo focava em outras questões: os ataques às liberdades civis e aos direitos dos muçulmanos nos EUA e na Europa e o imperialismo no Oriente Médio. Mesmo em 2013 e 2014, durante o caso Snowden, quando eu era muito visível na mídia brasileira e aparecia no Fantástico e n’O Globo, evitava emitir opiniões sobre política interna do Brasil.

Fazia isso por acreditar que é difícil dominar as nuances e as contradições de um país que não é o seu. Apesar de ler vorazmente notícias políticas (incluindo nesta revista) e estar imerso no trabalho de meu marido, não me sentia qualificado – mesmo depois de dez anos – para analisar política brasileira.

Tudo isso mudou em 2016. A primeira vez que usei minha plataforma para opinar sobre uma polêmica nacional foi quando o então juiz Sergio Moro vazou conversas privadas entre a então presidente Dilma e o ex-presidente Lula. Àquela época, antes da #VazaJato, não se sabia tanto sobre os abusos de Moro, mas eu, como advogado e jornalista, sabia que aquilo era absurdo. Por isso critiquei fortemente Moro em várias plataformas. Não esperava que isso fosse controverso. O abuso me parecia óbvio.

Eu estava enganado: foi muito controverso. Chamou-me atenção que os jornalistas mais incomodados eram os brasileiros. Defendiam Moro como quem defende um amigo. Foi aí que percebi que havia algo errado entre a mídia brasileira, a Lava Jato, Moro e o governo Dilma.

Isso me levou a mergulhar no debate do impeachment. Os artigos que escrevemos denunciando esse processo foram publicados pela primeira vez em inglês no The Intercept, o veículo que eu cofundei em 2013. Foi quando traduzimos esses artigos para o português que nos demos conta do apetite que havia por jornalismo independente no Brasil: os artigos traduzidos viralizaram rapidamente e se tornaram alguns dos mais lidos daquele veículo.

Foi aí que decidi fundar o The Intercept Brasil. Havia muito jornalismo de qualidade sendo produzido no País, em diversos blogs e nesta revista, por exemplo – mas ele não podia competir com o monstro corporativo liderado pela Globo, que há tanto tempo monopolizava o debate público.

O maior exemplo disso foi a campanha pelo impeachment de Dilma, tão politizada que o grupo Repórteres Sem Fronteiras denunciou a própria mídia brasileira em 2017 como uma ameaça à liberdade de imprensa, argumentando que a homogeneidade ameaçava o pluralismo e o jornalismo.

Muita coisa aconteceu desde então – a prisão de Lula, o assassinato de Marielle, a ascensão do bolsonarismo, a #VazaJato, a Covid-19 – que é fácil esquecer os absurdos do impeachment. Mas é importante manter essa memória viva. Considero o impeachment o pecado original que iniciou o processo de erosão democrática que se estende até hoje.

Era óbvio naquela época que a campanha pelo impeachment era um ataque à democracia. Os inimigos do PT viram a chance de conseguir o que não conseguiram nas urnas: a Presidência. Para isso, usaram táticas antidemocráticas, maquiadas com um verniz de legitimidade constitucional. Foi esse o evento que legitimou a ideia de que às vezes se pode driblar a democracia para atingir objetivos políticos. Armou-se o quadro ideal para o surgimento de Bolsonaro.

Nesse quadro, é vital lembrar o papel central das manobras de Moro. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia admitiu, em 2019, que o impeachment era impossível antes dessas conversas. E hoje, graças à #VazaJato, sabemos que outras interceptações do mesmo dia contradizem claramente a ideia de que a nomeação de Lula tinha motivações espúrias. Moro optou por vazar a conversa que, descontextualizada, permitia a interpretação mais prejudicial ao PT, e ocultar as que desmentiram essa tese.

Fica claro que foram Moro e seu abuso de poder, mais do que qualquer outra causa, que pavimentaram o caminho para Bolsonaro. Além de prender Lula e o tirar das eleições e dar a Bolsonaro o manto da anticorrupção, as digitais do Moro aparecem já no impeachment.

E a grande fiadora disso tudo foi a mídia brasileira, que transformou Moro em herói e liderou a campanha contra Dilma. Uma democracia não necessita somente de mídia, mas de jornalismo. E isso significa questionar e investigar, não repetir e espalhar, as devoções e ortodoxias da mídia corporativa e seus mestres.

Publicado originalmente na CartaCapital

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