Epitácio Pessoa, o presidente que proibiu negros na Seleção Brasileira

Em vez de uma condenação ao racismo sofrido pela Seleção em 1920, Epitácio vetou a convocação de negros para o Sul-Americano do ano seguinte

Durante seu governo, Epitácio Pessoa chegou a proibir a convocação de atletas negros para representar o Brasil no exterior

Antes – muito antes – de atletas como Pelé, Garrincha, Vavá, Didi e Djalma Santos ajudarem o Brasil a ganhar, em 1958, nosso primeiro título mundial, jogadores negros foram mal vistos e até vetados na Seleção Brasileira. O auge da discriminação ocorreu há cem anos e foi protagonizado por ninguém menos que o presidente da República, Epitácio Pessoa.

O ano era 1921. Expoente do pensamento racista da época, Epitácio se reuniu com os diretores da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – equivalente à atual CBF – e recomendou que apenas jogadores brancos representassem a Seleção. A justificativa: preservar a reputação do País no exterior.

“O futebol era majoritariamente branco. Eram times da elite, formados na maioria por brancos. As arquibancadas eram tomadas por pessoas da elite”, descreve o jornalista Luiz Carlos Duarte, biógrafo do jogador mestiço Arthur Friedenreich, o Fried, primeiro ídolo do futebol brasileiro. Foi de Fried o gol que deu ao Brasil o inédito título do Campeonato Sul-Americano de 1919 – e que levou Pixinguinha a compor Um a Zero, um clássico do chorinho.

Só que, no ano seguinte, o prestígio do futebol brasileiro foi abalado. A Seleção passou vexame no Sul-Americano de 1920, no Chile, ao perder do Uruguai por um humilhante 6 a 0. Antes de voltar para casa, a equipe foi à Argentina disputar um amistoso – e foi alvo de agressivos ataques raciais.

Em Buenos Aires, os jogadores foram recebidos com uma charge racista, publicada no jornal Crítica. A imagem retratava os brasileiros como macacos. “Já estão os macaquitos em terra argentina. Esta tarde teremos que acender a luz às 4 da tarde para vê-los”, zombava o texto da charge. “Se há uma gente que nos parece altamente cômica é a brasileira. São elementos de cor que se vestem como nós e pretendem se misturar à raça americana, gloriosa por seu passado e grande por suas tradições.”

Charge do jornal argentino Crítica retrata brasileiros como macacos

A publicação revoltou parte da delegação brasileira, e atletas se recusaram a jogar. Para Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, “foi o primeiro grito contra o racismo vindo de atletas – o primeiro grito de luta contra o racismo dentro do futebol brasileiro”. A partida acabou saindo de forma improvisada, disputada com sete atletas de cada lado. O Brasil perdeu por 3 a 1.

Alguns meses depois, em 1921, a Seleção voltaria à Argentina para disputar mais um Sul-Americano. Em vez de uma condenação ao racismo sofrido no ano anterior, o que se viu foi o contrário. Epitácio Pessoa vetou a convocação de jogadores negros. A recomendação não virou decreto oficial – o próprio Epitácio nunca admitiu a interferência. “A gente pode não achar documentos, mas o maior jogador brasileiro na época era mestiço e não foi convocado. Então aquilo aconteceu”, diz Marcelo Carvalho.

Mesmo tratando-se do início do século 20 – apenas 33 anos após a Lei Áurea – a medida foi criticada. “Os senhores absolutos do esporte, num golpe reprovável, sem base, antiesportivo, excluem do quadro nacional os negros e mulatos”, denunciou o Jornal O País.

O escritor Lima Barreto – que era negro – abordou a questão em uma crônica: “O football é eminentemente um fator de dissensão. Agora mesmo, ele acaba de dar provas disso com a organização de turmas de jogadores que vão à Argentina atirar bolas com os pés, de cá para lá, em disputa internacional. O Correio da Manhã aludiu ao caso. Ei-lo: ‘O Sacro Colégio de Football (a CBD) reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires, campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro — homens de cor, enfim. (…) O conchavo não chegou a um acordo e consultou o papa, no caso, o eminente senhor presidente da República.’ Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano.”

Décadas mais tarde, o escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano também citaria o episódio em seu livro Futebol, ao Sol e Sombra: “Em 1921, a Copa América ia ser disputada em Buenos Aires. O Presidente do Brasil, Epitácio Pessoa (…) ordenou que não se enviasse nenhum jogador de pele morena, por razões de prestígio pátrio”.

A CBD atendeu ao pedido de Epitácio e mandou uma Seleção 100% branca ao Sul-Americano de 1921. Em campo, porém, o Brasil perdeu o torneio

Com o time inteiramente branco, o Brasil não se saiu bem e perdeu o torneio mais uma vez. Diante da inferioridade técnica da equipe, em 1922 a CBD voltou a convocar os atletas negros. Naquele ano, o Brasil sediou o Sul-Americano pela segunda vez. Com a volta dos negros – incluindo Friedenreich, que se machucou no primeiro jogo –, a Seleção se sagrou bicampeã. Mas não foi uma medida antirracista.

“A entrada dos negros no futebol se dá puramente pelas capacidades técnicas e possibilidades de vitória que esses jogadores proporcionavam. É muito pouco ligada ao não racismo, à virada de chave contra o racismo”, afirma Carvalho.

Cem anos se passaram, e uma Seleção inteiramente branca não voltou a se repetir. Mas o Brasil ainda tem o racismo muito presente no futebol, ressalta Carvalho. “Nada é feito de forma contundente.” A entidade monitora dezenas de casos de racismo e, segundo Carvalho, o número de punições não chega a cinco. “Institucionalmente esse racismo ainda existe, mas é muito velado. Outro exemplo disso é a pouca quantidade de dirigentes e treinadores negros”, diz. Casos de ofensas racistas contra jogadores negros também são comuns, dentro e fora do Brasil.

O escritor brasileiro José Lins do Rego afirmou certa vez que “o conhecimento do Brasil passa pelo futebol”. Nessa mesma linha, Carvalho considera importante o resgate de personagens e eventos históricos sobre o preconceito racial sofrido nos campos: “Podem ser gatilhos para falarmos sobre racismo hoje. Porque aquilo ainda é muito presente na nossa sociedade. Não tem uma proibição de jogadores negros, mas a gente tem um racismo muito forte.”

Com informações da DW