Gorbatchov, 90: o melancólico aniversário do “coveiro” soviético

Se há nostalgia hoje na Rússia, não é de Gorbatchov – mas do período soviético

Em maio de 1992, Mikhail Gorbatchov partiu com a esposa, Raisa, para uma temporada de descanso. O local escolhido não podia ser mais emblemático: o rancho de férias de Ronald Reagan, na Califórnia, Estados Unidos.

Passados menos de cinco meses do sepultamento da União Soviética, Gorbatchov, seu principal “coveiro”, confraternizava e posava para fotos com o ex-presidente norte-americano – um dos precursores do neoliberalismo. Cúmplices na derrubada do bloco socialista ao longo da década de 1980, haviam virado amigos. Ao deixarem as tarefas presidenciais, compartilhavam a intimidade.

Nesta semana, em 2 de março, Gorbatchov completou 90 anos. Instalado num hospital de Moscou para se prevenir da pandemia de Covid-19, o homem-bomba que explodiu a União Soviética reuniu amigos numa videoconferência pelo aplicativo Zoom. De algum ponto de seu isolamento, também recebeu mensagens de congratulação de líderes ocidentais e até do presidente russo, Vladimir Putin.

Gorbatchov e Raisa (à dir.), no rancho da família Reagan

Nada disso tornou menos melancólico o aniversário do último presidente soviético. Ao atingir a nona década de vida, Gorbatchov permanece longe do louvor popular. Com a debacle socialista, os povos da antiga União Soviética passaram a viver sob um capitalismo dos mais predatórios. Se há nostalgia hoje, não é de Gorbatchov – mas do período soviético. Há quem a chame de “ressovietização”.

É na Rússia, em especial, que esse saudosismo mais resiste à passagem do tempo. Conforme levantamento feito em 2016 pelo Fundo de Opinião Pública, 58% dos russos dizem que Gorbatchov “desempenhou um papel negativo na história” do país. Ao mesmo tempo, pesquisas recentes apontam que mais da metade da população lamenta a queda da União Soviética – o número chegou a 66% numa sondagem de 2018 do Instituto Levada-Center. Curiosamente, a faixa etária em que o sentimento pró-soviético mais cresce é entre jovens de 18 a 24 anos – nascidos, portanto, após a extinção do país.

Da perestroika ao fiasco

Sente-se cada vez mais falta de uma história encerrada em 25 de dezembro de 1991, em cadeia nacional de TV. Naquele Natal, diante das câmeras, Gorbatchov anunciou o fim da mais épica das revoluções proletárias. No alto do Kremlin, a histórica bandeira vermelha com a foice e o martelo, símbolo da Revolução de 1917, foi substituída pela velha e empoeirada bandeira czarista.

Moradores de Moscou assistem, no Natal de 1991, ao anúncio do fim da União Soviética

O governo Gorbatchov – que prometia resolver a crise econômica da União Soviética com a “liberalização” do regime e um “socialismo modernizado” – fora um fiasco. A inflação crescia, os impostos também, a pobreza idem. Em 1990, a União Soviética entrou em recessão pela primeira vez em décadas. Uma e outra geração passaram a viver privações sem precedentes em suas vidas.

Como líder político, Gorbatchov igualmente fracassou. Não por acaso, quando ele foi à TV para renunciar a seu cargo, na prática já não havia mais União Soviética. Ao eliminar os pilares da experiência socialista, o que ele conseguiu de realmente notório foi desmantelar uma potência. Conflitos civis e políticos pipocavam pelo território. Numa onda separatista, a maioria das repúblicas que formavam o Estado soviético se tornou independente, incluindo a maior delas, a Rússia.

A União Soviética produziu algumas das imagens icônicas do século 20. É o caso do hasteamento da bandeira nacional, o “Estandarte da Vitória”, no Palácio do Reichstag, em maio de 1945, na 2ª Guerra Mundial – a “Grande Guerra Patriótica”. Ou das cenas memoráveis da corrida espacial, como o lançamento do primeiro satélite artificial (o Sputnik 1) e do primeiro “cosmonauta” no espaço (Yuri Gagarin). Ou ainda o “choro” do mascote Misha na cerimônia de abertura da Olímpiada de Moscou, em 1980.

Filas em supermercados, uma imagem típica da União Soviética nos anos Gorbatchov

Mas, sob Gorbatchov, as imagens que vinham da União Soviética eram invariavelmente desoladoras: a explosão do reator da Usina Nuclear de Chernobyl; as filas nos mercados e nas lojas, com suas prateleiras vazias (que traduziam o colapso da perestroika); o malsucedido “golpe de agosto” de 1991 (com direito a um esdrúxulo sequestro do presidente); a chantagem que Boris Yeltsin impôs a Gorbatchov para proibir o Partido Comunista; e o próprio anúncio do fim da União Soviética numa noite de Natal.

Herói?

Gorbatchov foi louvado pelo Ocidente capitalista e pelas elites internacionais. Mesmo no cenário da Guerra Fria, o líder “comunista” soube conquistar a guarida da Casa Branca, ganhou frequentes elogios do João Paulo 2º e recebeu até um Nobel da Paz – tudo como outro dissidente, o polonês Lech Wałęsa. Em 2018, o cineasta alemão Werner Herzog lançou um documentário chapa-branca, Encontrando Gorbatchov, para retratar o último presidente soviético como herói.

A verdade é que esses heróis do sistema, Gorbatchov e Wałęsa – um ex-agente da KGB e um ex-informante –, foram, são e continuarão a ser renegados por seus compatriotas. Em 1996, ao testar sua popularidade nas eleições presidenciais da Rússia, Gorbatchov não passou de 0,52% dos votos válidos – um desempenho tão humilhante que decretou o fim de sua carreira política.

Gorbatchov e Wałęsa, em foto de 2019: os dois “heróis” do sistema foram renegados por seus compatriotas

Ainda assim, numa entrevista ao jornal alemão Der Spiegel, em 2001, o “coveiro” soviético fugiu a qualquer autocrítica, a não ser para reforçar o anticomunismo. “Eu faria a perestroika exatamente da mesma forma hoje”, afirmou. “Entrei para o Partido Comunista aos 19 anos, quando ainda estava na escola. Meu pai tinha estado na frente de batalha, meu avô era um velho comunista – e eu deveria explodir aquilo tudo? Hoje sei que deveria ter explodido.”

Como Gorbatchov, Wałęsa, hoje com 77 anos, volta e meia é paparicado pela grande mídia ocidental, embora tenha sido uma peça inegavelmente menor no tabuleiro de xadrez da Guerra Fria. Seu epílogo não foi menos vexatório. Ele tentou voltar à presidência da Polônia em 2000, mas terminou a eleição com 1,01% dos votos. A derrota antecipou sua aposentadoria.

Um e outro traidores da causa socialista ainda vivem, dão entrevistas, são saudados no Ocidente – mas amargam, ambos, os dissabores de não terem o respaldo dos povos que eles afirmavam libertar. De Lênin, principal ideólogo e construtor da União Soviética, ainda há cerca de 5.500 estátuas espalhadas pela Rússia. E de Gorbatchov?

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Um comentario para "Gorbatchov, 90: o melancólico aniversário do “coveiro” soviético"

  1. CARLOS AUGUSTO DE BONIS CRUZ disse:

    Aos traidores o esgoto da História.

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