Tim, tim, querido camarada e amigo José Carlos Ruy

Ainda não é possível, para mim, dimensionar o vazio que se abre com a sua morte. Talvez nunca seja.

Tenho grande identificação com as palavras de Guimarães Rosa sobre o que é ser amigo. Para ele, é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. “O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios”, escreveu no clássico Grande Sertão: Veredas. Para ele, amigo tem gradação e compartimentação. O que não significa ser mais ou menos preferido, mas com distinção sobre predileções na vida.

José Carlos Ruy, o dileto amigo que faleceu nesta terça-feira 2 de fevereiro de 2021, era para mim um desses que Guimarães Rosa caracterizou. Foi daqueles amigos que a gente se entendia à perfeição no plano intelectual. Ele com uma cultura geral muito superior, o que lhe conferia, na nossa convivência, um intenso trabalho para corrigir e avalizar o que eu produzia. Foi assim desde que começamos a conviver mais de perto, quando ele me convidou, em 1996, para integrar a equipe da revista Princípios. Infelizmente, devido a outros afazeres, não pude aceitar.

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Já vínhamos de uma convivência esporádica, mas constante, na redação da revista Debate Sindical. A vida, com essa lei de jogar a gente para lá e para cá, acabou nos jogando, em 2002, no mesmo porão, na alameda Sarutaiá, 185, nos Jardins, em São Paulo, onde funcionavam as redações do Portal Vermelho e d’A Classe Operária, jornal do qual ele era editor. Eu inquieto, vindo da agitação do jornalismo sindical – fui diretor de imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo de 1989 a 2001 –, pouco afeito à rotina para mim amarrada daquela redação, sempre trocando ideias com ele.

Suas observações sobre meus artigos eram uma espécie de suspiro e contexto para sermos amigos a la Guimarães Rosa. Consolidamos nosso convívio e afinidades, inclusive sobre a especialidade em cachaça. Visitava sua casa para degustar sabedoria, saborosas comidas e variadas marcas de branquinhas e amarelinhas. Quando cheguei na Fundação Maurício Grabois, em 2008 – a convite de Adalberto Monteiro, com quem trabalhamos na Sarutaiá –, Ruy era o diretor de publicações. Para sua alegria, recuperei e publiquei dois filmes dos quais ele foi um dos idealizadores nos tempos do Retrato do Brasil — A mão invisível do mercado e e Eu e o mercado.

Com nossa afinidade, coube a ele olhar, com o rigor e a minudência de um arqueólogo, as biografias de Maurício Grabois, Pedro Pomar, Vital Nolasco e Aurélio Peres. Agora, estava olhando, com a mesma dedicação, a biografia de Antônio de Almeida Soares, o Tom – em fase final de elaboração –, que vai ficar menos completa sem a sua última revisão. Lembro da sua alegria quase incontida quando me devolveu os originais da biografia de Aurélio Peres. Por isso, disse nos agradecimentos que ele é um dos coautores da obra.

Bebemos, rimos, falamos de tudo e não pudemos nos despedir. Minha última conversa com ele se deu no domingo dia 22 de novembro de 2020. Com a quarentena da pandemia da Covid-19, falávamos por telefone. Ele me ligou para conversarmos. Sugeri uma conversa pela internet, transmitida ao vivo. E saiu uma deliciosa Roda de Conversa. Lamentamos não podermos tomar uma bela cachaça para festejar aquele momento. E assim ele se foi, como me disse uma vez sobre a morte de seu irmão mais velho, no momento em que a gente mais precisava dele.

Refazer essa trajetória lanceta o coração, mas reaviva as boas memórias – como uma homérica e saudável cachaçada para receber em São Paulo o escritor Urariano Mota no lançamento do seu livro A mais longa duração da juventude, do qual Ruy escreveu o prefácio. Ruy foi desses amigos que, como disse João Amazonas sobre o assassinato de Pedro Pomar pela ditadura militar, a gente não consegue refazer ainda que voltasse à juventude.

Ainda não é possível, para mim, dimensionar o vazio que se abre com a sua morte. Talvez nunca seja. Fico sem uma das mais importantes interlocuções que consegui na vida. Mas venho de outras perdas, igualmente gigantes – a perda estúpida e precoce do irmão, em 1995, e de Augusto Buonicore, outro amigo da estirpe de José Carlos Ruy, há quase um ano. Com ambos, fiz grandes e importantes trabalhos. Para mim, são abstrações, desafios que precisam ser enfrentados para superar o que com eles era facilmente superado.

Uma página de Anatole France me vem à memória, pelas crônicas de Humberto de Campos, nesse momento; um dique para emoções, fundamental para equilibrar a racionalidade. Infelizmente, tenho o episódio apenas de lembrança, na verdade um complemento profano do 2º versículo do Eclesiastes. As pessoas odeiam-se, batem-se, sacrificam-se, por quê? Pela pátria, pela glória, por um ideal? E que são a pátria, a glória, os ideais?

O filósofo responde: “Dentro dos cem anos, não viverei mais; dentro de duzentos anos, talvez ninguém saiba o meu nome; ao fim de quinhentos, a minha pátria terá, provavelmente, desaparecido; ao fim de três mil anos, não existirão mais, com certeza, nem a minha raça, nem a língua em que escrevi a minha obra.” Contei isso uma vez para o Ruy; ele riu à solta e disse: “Aí estaremos no comunismo, o nosso principal ideal! Vamos tomar mais uma!” Tim, tim, querido camarada e amigo!  

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