A política externa de Biden não será muito diferente da política do passado

Apenas o clima será diferente, os sorrisos mais amplos, e as zombarias escondidas na sala dos fundos

Poucos dias antes da eleição presidencial nos Estados Unidos de 2020, Joe Biden refletiu sobre as tragédias do governo Donald Trump. “Tragicamente, o único lugar em que Donald Trump atingiu sua meta de colocar a ‘América em primeiro lugar’ é na sua resposta fracassada ao coronavírus: somos 4% da população mundial, mas 20% das mortes”, disse Biden. Esta é uma declaração que claramente se esquiva da tentativa racista de Trump de culpar a China pelas mortes nos EUA; a culpa deve ser colocada a quem pertence: um sistema de saúde pública falido, uma indústria médica e farmacêutica centrada excessivamente nos lucros, e um Poder Executivo incompetente. Biden demarcou uma clara diferença entre o que a administração Trump fez e o que sua administração faria.

Mas, à medida que expandia suas observações, ficou evidente que a lacuna entre ele e Trump não é tão coerente quanto parece. O problema com Trump, ele sugeriu, foi ter abraçado “os autocratas do mundo” e colocado “o dedo no olho de nossos aliados democráticos”. É por isso que, segundo Biden, “o respeito pela liderança americana está em queda livre”. Em outras palavras, o problema para os EUA não é sua política externa, mas apenas a mudança de estratégia do governo Trump para implementá-la.

Em março, Biden escreveu na revista Foreign Affairs que também buscaria reafirmar o poder dos EUA para que mantivessem sua posição de única superpotência do mundo. Ele não usou a famosa frase de Trump – e, antes dele, de Ronald Reagan – “America First” [América em primeiro lugar], mas falou sobre como esta “é a hora de usar a força e a audácia que nos levaram à vitória em duas guerras mundiais e derrubaram a Cortina de Ferro”.

O objetivo de colocar os EUA em primeiro lugar permanece; Biden não implementará nenhuma nova forma de multilateralismo. Ele simplesmente tentará reconstruir a “aliança atlântica” – com os vizinhos norte-americanos, do Canadá, e com os países europeus – para buscar a primazia norte-americana contra qualquer um que esteja no caminho dos objetivos de Washington.

Beligerância contra a China

A guerra comercial e a beligerância estadunidense contra a China não são de autoria de Trump, mas foram herdadas do governo de Barack Obama. Essa pressão sobre a China não é apenas uma questão política, mas está enraizada em grandes setores da elite dos EUA, que passaram a entender que os avanços científicos e tecnológicos do país Asiático ameaçam as vantagens do monopólio dos EUA.

Em um evento organizado pelo ultraconservador Instituto Hoover, Eric Schmidt (ex-chefe da Google e da Comissão de Segurança Nacional de Inteligência Artificial) disse que os EUA estão “um ou dois anos à frente da China” quando se trata de inteligência artificial; “Não estamos uma década à frente”. “Estamos em uma competição”, disse ele, “e parte das razões pelas quais eu acredito que a China pode vencer é que eles têm cinco vezes mais pessoas. Eles estão muito focados na educação STEM (ciência, tecnologia, engenharia, matemática, na sigla em inglês)”. O medo de que a China possa “vencer” define a política dos EUA em relação ao país.

O Brookings Institute, uma entidade liberal da qual Biden levará muitas pessoas para sua administração, divulgou recentemente um relatório intitulado Os Estados Unidos, a China e a Concorrência pela Quarta Revolução Industrial (julho de 2020). A ideia de que os países estão em uma “competição” corresponde inteiramente a uma opinião de Washington; não existe tal retórica vinda de Pequim. O autor deste relatório observa que a China pode “vencer” porque tem investido pesadamente em pesquisa e desenvolvimento, tem políticas industriais que apoiam o crescimento do setor de tecnologia interno, tem “proezas manufatureiras e centralidade nas cadeias de abastecimento globais”.

A China provavelmente estará definindo “os padrões globais de tecnologia”, como diz o artigo. Como exemplo, em julho, o Congresso Nacional do Povo da China aprovou um plano de US $ 1,4 trilhões a serem gastos na construção de redes de quinta geração (5G); isso é muito mais do que qualquer outro país ou empresa destinará para avanços nas telecomunicações. A China começou o ano com 2 milhões  de torres 5G, mas busca alcançar seu objetivo de erguer 5 milhões de torres 5G até o final de 2021.

O Secretário de Estado de Biden será o seu Conselheiro de Segurança Nacional, Antony Blinken. Em setembro, Blinken disse que “a China representa um desafio crescente, provavelmente o maior desafio que enfrentamos vindo de outro Estado-nação: economicamente, tecnologicamente, militarmente e até diplomaticamente”. É importante observar a sequência em que os problemas foram colocados – desafios econômicos e tecnológicos à frente dos desafios militares e diplomáticos. Ao contrário do Secretário de Estado de Trump (Mike Pompeo), Blinken admite que essa relação terá “aspectos adversários, aspectos competitivos, mas também cooperativos”; é esse último aspecto, o cooperativo, que diferencia Pompeo de Blinken, embora os únicos exemplos aqui (mudanças climáticas, combate à propagação do vírus, saúde global) não levam em conta a principal questão que vai separar os EUA da China, ou seja, o avanço tecnológico chinês.

Qual é a estratégia para lidar com o avanço tecnológico da China? Blinken disse que os EUA tiveram que montar uma “liga de democracias”,  que reúne basicamente os antigos aliados europeus e o Japão – o G7 e a OTAN – para se posicionar contra a China. Ele tem um pequeno adicional à velha ideia da “liga de democracias” (que é lançada toda vez que um governo do Partido Democrata toma posse em Washington); Blinken quer criar uma liga de ‘tecnodemocracias’ e posicioná-las contra ‘tecnoautocracias’, como a China”. Os EUA têm que “fazer um trabalho muito melhor em liderar, coordenar e trabalhar com as outras tecnodemocracias para garantir que saia em primeiro todos os dias, e não a China”.

Não há um reconhecimento de que a China avançou tecnologicamente e de que seus avanços não podem ser revertidos antes de uma guerra. Em vez de reconhecer que a China é uma potência tecnológica que deve poder competir no mercado mundial, os EUA querem usar seu poder político e militar para exigir que a China entregue seus avanços tecnológicos. Essa será a política de Biden como foi também a de Trump, com a única diferença de que Biden e sua equipe tentarão subornar os europeus para apoiar totalmente sua política, evitando depender tanto do Quad (grupo estratégico informal formado pelos EUA, Austrália, Índia e Japão). A retórica belicista pode ser menos direta, mas o mesmo tipo de atmosfera bélica será imposta contra a China.

Sanções contra a Venezuela

Um dos grandes ultrajes de nosso tempo é o uso de sanções unilaterais e criminais por parte dos EUA contra a Venezuela e outros 30 países. Esse uso de sanções é muito anterior a Trump. A política de sanções contra a Venezuela foi intensificada por Obama, e levada a um nível extremo por Trump. Alguns dos assessores de Biden disseram à Bloomberg, anonimamente, que o novo presidente acolheria um diálogo com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, mas apenas se Maduro realizasse novas eleições; tal pré-condição é inaceitável o país sul-americano, que afirma que novas eleições seriam contra a Constituição da Venezuela e representariam uma ingerência em seu processo político.

A matéria da Bloomberg não ilustra a ampla política que Biden seguirá em relação à Venezuela. Em março de 2019, Jake Sullivan, designado conselheiro de Segurança Nacional por Biden, dialogou com Walter Russell Mead, do Hudson Institute, sobre uma série de questões. Quando Mead perguntou a ele sobre a Venezuela, Sullivan deu uma resposta honesta, mas assustadora. Sullivan concordou com Mead que “uma solução militar conduzida pelos EUA é um risco grande demais para entretenimento”.

Sullivan disse que, portanto, os EUA deveriam “focar em todas as ferramentas não militares que poderiam utilizar”. Em outras palavras, ele disse que os EUA devem aprofundar a guerra híbrida de Obama e Trump. O que isso significa na prática? “Dobrar as peças das sanções e continuar construindo a coalizão internacional em torno disso”. Este comentário foi feito após a tentativa fracassada do governo Trump de conduzir dois golpes em 2019, e depois que as Nações Unidas, em várias ocasiões, apontaram que a política de sanções era cruel e ilegal. O “idealismo progressista” de Sullivan e Blinken não se comove perante o sofrimento humano.

O que mais importante para Sullivan era indicar como usar a situação da Venezuela para subverter o poder da China e da Rússia. Os EUA deveriam, disse ele, “focar em afastar a China, Cuba e Rússia da Venezuela através de todos os meios que temos à nossa disposição, porque esses, efetivamente, são a corda salva-vidas [da Venezuela]”. O governo Biden vai gastar muita energia minando os laços que foram estabelecidos pela China e Rússia com países como Irã e Venezuela. Não haverá, portanto, nenhuma mudança na ampla política externa após a mudança de regime em Washington. Apenas o clima será diferente, os sorrisos mais amplos, e as zombarias escondidas na sala dos fundos.

Fonte: Brasil de Fato

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