Argentina legaliza o aborto e faz história na América Latina

De volta à vanguarda dos direitos sociais na América Latina, Argentina é o primeiro grande país da região a permitir que as mulheres decidam sobre seus corpos e se querem ou não querem ser mães

Agora é lei. Na Argentina, toda mulher que decide interromper a gravidez pode abortar de forma legal, segura e gratuita no sistema de saúde. Por 39 votos a favor, 29 contra e uma abstenção, o Senado argentino aprovou na madrugada desta quarta-feira (30) a legalização do aborto até a 14ª semana da gestação. O país fez história ao enterrar a lei em vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou risco de morte da mãe. Nas ruas, a maré verde – cor símbolo do feminismo no país – explodiu de alegria.

Com a nova legislação, a Argentina está mais uma vez na vanguarda dos direitos sociais na América Latina. A partir desta quarta-feira, é o primeiro grande país da região a permitir que as mulheres decidam sobre seus corpos e se querem ou não querem ser mães, como já fizeram Cuba, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade do México). Nas demais, há restrições totais ou parciais, como no Brasil.

A iniciativa argentina, aprovada na Câmara dos Deputados há duas semanas, prevê que as gestantes tenham acesso ao aborto legal até a 14ª semana após a assinatura do consentimento por escrito. Também estipula um prazo máximo de dez dias entre a solicitação de interrupção da gravidez e sua realização, a fim de evitar manobras que retardem o aborto.

A pressão de grupos religiosos e conservadores para manter a criminalização do aborto foi forte, mas não suficiente para repetir o resultado de 2018, quando o Senado rejeitou o projeto. Ainda assim, uma forte ofensiva legal é esperada. No país do papa Francisco, a Igreja ainda tem muito prestígio. E não só porque trabalha em conjunto com o Estado no atendimento aos mais pobres, por meio de centenas de refeitórios populares.

A proximidade de Francisco com o presidente Alberto Fernández – que apoiou a legalização – é evidente, e a questão do aborto sempre foi um território incômodo de disputas. A praça em frente ao Congresso era prova disso. No lado celeste, onde grupos antiaborto se reuniam e exibiam as cores do país, padres celebravam missas diante de altares improvisados e os manifestantes carregavam cruzes e rosários, fotos de ultrassom e um enorme feto de papelão ensanguentado.

Ao contrário da Câmara dos Deputados, onde a aprovação foi folgada, o resultado no Senado mais conservador era mais incerto. Mas desde o início a expectativa acompanhou os verdes. Os números eram muito equilibrados e tudo dependia de um punhado de indecisos, que imediatamente passaram de cinco para quatro: um senador previu que votaria pró-aborto após um mínimo de ajustes no texto da lei.

Horas depois, dois senadores também anunciaram seu voto positivo e elevaram os votos afirmativos para 38, ante 32 negativos. Os contrários, além disso, haviam perdido dois votos antes de partir: o do senador e ex-presidente Carlos Menem, em coma induzido por uma complicação renal; e o do ex-governador José Alperovich, de licença até 31 de dezembro por denúncia de abuso sexual.

O triunfo do “sim” à lei logo se definiu, pouco antes da meia-noite, quando ainda faltavam quatro horas de discursos. “Quando nasci, as mulheres não votavam, não herdávamos, não podíamos ir à universidade. Não podíamos nos divorciar, as donas de casa não tínhamos aposentadoria”, declarou a senadora Silvia Sapag durante o debate, numa síntese do tom dos discursos verdes. “Quando nasci, as mulheres não eram ninguém. Sinto emoção pela luta de todas as mulheres que estão lá fora agora. Por todos elas, que seja lei!”

Do lado de fora do Senado, Jimena López, de 27 anos, com um cartaz que dizia “Aborto legal é justiça social”, homenageou mulheres que morreram devido à criminalização do aborto: “Queremos que seja lei para que mais nenhuma mulher morra por aborto clandestino. Por María Campos. Por Liliana. Por Elizabeth. Por Rupercia. Por Paulina. Por Rosario. Pelas mais de 3 mil mulheres que morreram por abortos clandestinos desde o retorno da democracia”.

Nas províncias do norte do país, aquelas mais influenciadas pela Igreja Católica e grupos evangélicos, a maioria dos legisladores se opôs. Já na capital argentina e na província de Buenos Aires, por outro lado, quase todos os representantes apoiaram a legalização, qualquer que fosse o partido.

Durante 99 anos, na Argentina foi legal interromper uma gravidez em caso de estupro ou risco para a vida ou a saúde da mãe, como no Brasil (que também autoriza aborto em caso de anencefalia). Em todos os outros casos, era um crime punível com prisão. Ainda assim, a criminalização não foi um impedimento: de acordo com estimativas não oficiais, cerca de meio milhão de mulheres fazem abortos clandestinos a cada ano.

Em 2018, 38 mulheres morreram de complicações médicas decorrentes de abortos inseguros. Cerca de 39 mil tiveram de ser hospitalizadas por essa causa. “Obrigar uma mulher a manter sua gravidez é uma violação dos direitos humanos”, afirmou a senadora governista Ana Claudia Almirón, da província de Corrientes, no norte do país. “Sem a implementação de educação sexual integral, sem a previsão de anticoncepcionais e sem um protocolo de interrupção legal da gravidez, as meninas correntinas são obrigadas a parir aos 10, 11 e 12 anos.”

Em 1921, quando a lei atual foi aprovada, a Argentina estava na vanguarda regional dos direitos das mulheres, mas a falta de debates posteriores a fez perder a disputa. Dois anos atrás, a luta pró-aborto avançou. “Em 2018 não alcançamos a lei, mas conscientizamos sobre um problema: hoje existem mulheres que abortam em condições precárias e insalubres”, afirma Mariángeles Guerrero, da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito.

Segundo a ativista, “o aborto deixou de ser um assunto tabu que se falava em voz baixa e passou a ser um assunto que tinha de ser debatido politicamente para garantir condições seguras”. Em dois anos, houve a virada – e, agora, a Argentina recuperou o terreno perdido: as mulheres argentinas têm, enfim, o direito de decidir quando e como serem mães.

A América Latina como um todo ficou um pouco mais perto de ser um lugar onde a interrupção segura da gestação deixará de ser um privilégio reservado a quem tem recursos. O caso argentino, no entanto, ainda representa um oásis no acesso ao aborto nesta região do mundo, onde cinco países o proíbem sem exceções (El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Haiti).

O debate tem outras caras. Dezenas de salvadorenhas foram condenadas a até 30 anos de prisão por abortos espontâneos. Hondurenhas recorrem a uma linha telefônica clandestina que ajuda as mulheres a interromperem suas gestações de maneira segura, ainda que sob o risco de prisão. Na República Dominicana, em 2012, Esperancita, de 16 anos, morreu após ser diagnosticada com leucemia no início de uma gravidez. Sua quimioterapia foi adiada para não prejudicar o feto. Neste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) aceitou analisar o caso da adolescente à qual foi negado o aborto terapêutico.

“A Argentina é uma esperança para toda a América Latina”, diz, de El Salvador, a presidenta do Agrupamento Cidadão pela Despenalização do Aborto, Morena Herrera, que acompanhou durante toda a noite o debate no Senado argentino. “É um processo que move as possibilidades na América Latina. Acho muito importante pelos argumentos, pela fundamentação. Na Argentina se mostrou que toda a problemática da clandestinidade e ilegalidade do aborto é um problema de saúde que deve ser tratado como tal – e que provoca maiores desigualdades porque afeta muito mais às mulheres que vivem em situação de vulnerabilidade, que são a maioria em nossos países.”

Segundo a Organização Mundial da Saúde, só um em cada quatro abortos feitos na América Latina ocorre de maneira segura, e é cada vez mais comum que as mulheres interrompam suas gestações recorrendo a métodos clandestinos ou a remédios como o misopostrol (tradicionalmente usado para tratar úlceras gástricas), adquiridos fora dos sistemas formais de saúde.

Conforme o Instituto Guttmacher, mais de 97% das mulheres da região em idade reprodutiva vivem em países com leis restritivas, o que não impediu que fossem registrados 6,5 milhões de abortos por ano entre 2010 e 2014. Por isso, espera-se que os debates na Argentina possam ser retomados em outros países latino-americanos.

Entre os países que legalizaram o aborto e os mais restritivos, há diversas situações em que as mulheres podem ou não podem decidir sobre seus corpos. A Bolívia e a Colômbia, por exemplo, permitem o aborto se não for assegurada a viabilidade do feto, em casos de estupro e incesto, ou se houver risco à vida ou à saúde física e mental da mulher.

Em outros países, como o Chile, onde o aborto foi despenalizado há apenas três anos, essa possibilidade é oferecida às mulheres cuja vida estiver em risco ou que demonstrem a inviabilidade do feto. Já na Guatemala, no Paraguai e na Venezuela, a mulher só pode abortar se ficar provado que sua própria vida corre perigo, o que na prática representa uma proibição quase total.

Com informações do El País

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