Cinemateca Brasileira: A sombra de uma tragédia

Texto assinado pela Associação Brasileira de Preservação Audiovisual e os movimentos Cinemateca Acesa, Cinemateca Viva e SOS Cinemateca APACI

Sala de projeção da Cinemateca Brasileira | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Em breve, um ano terá transcorrido desde que a Cinemateca Brasileira foi fechada ao público. Depois que um incêndio devastador destruiu a quase totalidade do acervo histórico e científico do Museu Nacional no Rio de Janeiro, com vinte milhões de itens reunidos ao longo de duzentos anos, uma nova ameaça arquitetada pelo descaso do governo paira sobre o maior arquivo audiovisual do Brasil.

A Cinemateca Brasileira

Com 74 anos de existência, a Cinemateca Brasileira é uma das mais importantes instituições de memória da América Latina, com mais de 250 mil rolos de filmes, nos mais diversos formatos, e um milhão de documentos relacionados ao audiovisual, entre fotografias, cartazes, roteiros, manuscritos, críticas e artigos sobre cinema.

Quase tudo o que restou do nosso cinema silencioso, nossos cinejornais, o acervo da TV Tupi, as produções da Atlântida, da Vera Cruz e do Canal 100, a maior parte da filmografia do Cinema Novo e do Cinema Marginal, com títulos recém restaurados, nossos filmes domésticos, os registros de amadores, está tudo lá. Sem falar da quase totalidade da exuberante e riquíssima produção audiovisual nacional recente.

A crise atual

Desde 31 de dezembro de 2019, quando terminou o contrato entre o governo federal e a ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), organização social (OS) que administrou a Cinemateca a partir de 2018, a instituição foi relegada ao abandono. As contas básicas como água e energia deixaram de ser pagas. Em março, sem nenhuma proposta de acordo do governo, a OS interrompeu todos os pagamentos dos funcionários, levando a CB ao colapso. Sem salário, os trabalhadores entraram em greve. A brigada de incêndio e a segurança debandaram. A iminência de um desastre fez com que a sociedade civil e associações do audiovisual se mobilizassem: de maio a outubro, foram cinco manifestações diante da sede na Vila Mariana. Houve audiências públicas, federais e municipais. Importantes cineastas e organismos internacionais protestaram. Diante da inação do Governo, vereadores de São Paulo levantaram uma dotação de R$ 680.000,00 em emendas para financiar um plano de emergência que retirasse a CB dessa situação de risco.

Foi impetrada uma Ação Civil Pública, cobrando providências urgentes da União. Ainda assim, após a retomada das chaves pelo Governo no dia 7 de agosto – com agentes da Polícia Federal armados invadindo o local – os 62 trabalhadores (que mesmo sem salário insistiam em inspecionar os filmes) foram oficialmente demitidos e impedidos de voltar ao local.

Desde então, o Governo publicou no Diário Oficial a contratação de empresas e de 4 dos antigos técnicos para assegurar as necessidades básicas da instituição, enquanto se organizava a contratação de uma nova OS. Mas todas essas promessas se revelaram vazias e hoje o acervo continua fechado e correndo perigo.

A dotação levantada pelos vereadores – que seria encaminhada através da SAC, Sociedade Amigos da Cinemateca, destinada a readmitir o corpo técnico em caráter emergencial – foi desprezada por motivos políticos, apesar dos meses passados em negociações.

Perigo premente

Com a chegada do verão, entre tempestades tropicais e altas repentinas de temperatura, o risco de incêndio tornou-se ainda maior, já que na Cinemateca Brasileira está depositada a quase totalidade dos filmes em nitrato realizados no Brasil que foi possível conservar. Trata-se de um patrimônio único, de valor inestimável, mas que, sem os devidos cuidados, como a revisão periódica, pode entrar em autocombustão, como já aconteceu em 2016, quando um dos depósitos se incendiou e 1005 rolos dos primórdios do nosso cinema se perderam para sempre.

Encaminhamentos atuais

Apesar das promessas recentes do Secretário do Audiovisual Bruno Côrtes, de que a Sociedade Amigos da Cinemateca seria contratada para executar um plano de trabalho emergencial de gestão do acervo, transcorridos 4 meses desde a entrega das chaves, a Cinemateca continua abandonada. Em meados de dezembro, uma carta assinada por mais de cem produtores audiovisuais foi entregue à Secretaria do Audiovisual. Mas a recente exoneração de mais um Ministro do Turismo e o infarto do Secretário da Cultura, Mário Frias, pressagiam mais imobilismo.

Graças a uma petição que detalhou os riscos de explosão dos depósitos em área residencial, a Associação dos moradores da Vila Mariana conseguiu ser qualificada como assistente da Ação junto ao Ministério Público. Desde então, os vizinhos da Cinemateca se lançaram na busca de provas para convencer o Juiz da urgência dessa reabertura. Descobertas preocupantes vieram à tona: a empresa contratada para fazer a manutenção do prédio (tombado pelo IPHAN) é uma Eireli (tem um único sócio). A limpeza ficou a cargo de uma companhia da área hospitalar. Nenhuma das duas é qualificada para assegurar a manutenção do arquivo. Desde dezembro de 2017 a Cinemateca não teve laudo de vistoria estabelecido pelo Corpo de Bombeiros.

Luz no fim do túnel

A verba arrecadada pelos vereadores paulistas foi confiada à SP Cine e permanece disponível para socorrer a instituição, até que seja encontrada uma solução adequada. O Diretor de Políticas Audiovisuais da SAv, Hélio Ferraz, afirma estar trabalhando para tanto. Ainda está em tempo.

É essencial que a sociedade civil se conscientize sobre a importância do patrimônio audiovisual brasileiro. A diversidade e o vigor de nossa produção cultural em todas as suas expressões, nossa história, nossa memória e a nossa identidade dependem disso. Esse patrimônio é fundamental para avançarmos em um projeto de país à altura do Brasil.

A sobrevivência da Cinemateca Brasileira e de todas as nossas instituições de memória é uma questão fundamental, estratégica e de interesse de todos. O patrimônio audiovisual brasileiro é de todos nós.

Fonte: Carta Maior

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