As lições da pandemia: o que é possível aprender com esta catástrofe?

Mesmo precarizadas, as universidades e a pesquisa científica, assim como o SUS e hospitais públicos mostraram que o fator humano foi essencial para enfrentar a pandemia, apesar da vacilação dos governos.

Prof. dr. Charles Mady – Foto: Incor-HCFMUSP

A pandemia que estamos enfrentando trouxe consequências destrutivas, sentidas em toda a sociedade. Sofrimento físico, psicológico e material estão marcando nossas vidas, com feridas e sequelas profundas, que persistirão por muito tempo. Essa enorme agressão está deixando lições para nós? Filósofos, e religiosos, de forma pragmática, comentam que o sofrimento abre portas didáticas para o ser humano, despertando a visão sobre erros e estimulando a criatividade para novas soluções. Na área de saúde, pública e privada, o que aprendemos com essa catástrofe? No setor público, as universidades e o SUS deram uma demonstração do quão eficientes podemos ser. As universidades, política e economicamente muito agredidas pelos dirigentes, mostraram resultados impressionantes, apesar da precária situação que se encontram. Há razões para isso, e a maior delas é o fator humano, que se mostrou determinado, superando todas as expectativas. Se políticas de saúde realistas, baseadas em ciência, tivessem sido implementadas pelas autoridades, teríamos tido resultados mais convincentes. Boa parte do pessoal que atuou na linha de frente foi graduada em universidades públicas, tendo conhecimento profundo da situação de nosso povo. Soube enfrentar a catástrofe de forma equilibrada, dentro das possibilidades disponíveis. Não se renderam, ficando expostos às consequências. Os hospitais universitários, os que mais sofreram, tiveram que se reinventar, para se adaptarem à nova realidade. Não foram raras as vezes que, com semblante de esgotamento, os reitores das estaduais se manifestaram na imprensa requisitando e recebendo ajuda de setores privados. As administrações ficaram sobrecarregadas pelos problemas que surgiam, e surgem diariamente. Nesse ponto, em nosso meio, é que o valor humano se destacou. Quando os escalões de segundo plano foram solicitados, sem que tenham tido cursos de administração, deram aulas de competência e criatividade. Foram educados para ensinar, atender, e fazer ciência, com responsabilidades administrativas limitadas. Se modernizaram, mostrando sua excelência. Isto demonstra a importância de um corpo administrativo profissional, junto aos recursos humanos de saúde, que têm outras obrigações. Empresas com corpos administrativos insuficientes tendem ao fracasso. As rédeas devem estar nas mãos de profissionais qualificados para essas finalidades, em tempo integral, aconselhando e construindo soluções.

Este é um aspecto cultural antigo em hospitais universitários. O acúmulo de atividades acadêmicas consome quase todo o tempo disponível. Será que, com estrutura administrativa mais poderosa, os resultados teriam sido melhores? Outro ponto a se destacar foi a forma como as ciências de saúde enfrentaram o problema. Projetos científicos de qualidade internacional foram elaborados por pesquisadores, produzindo excelentes resultados. São cabeças que teriam sucesso em qualquer centro universitário do mundo. Estão eles sendo valorizados? Os setores políticos entendem o progresso que isso nos traz? Eles compreenderam o valor dessas pessoas? Esse pessoal tem muito a aprender com a saúde de nosso país, como já comentamos recentemente no artigo “A saúde como exemplo”, na Folha de S. Paulo. As academias são barreiras na pretensa política de destruição das universidades e hospitais públicos. São reconhecidos internacionalmente.

Há falhas e imperfeições, mas, ao invés de apoiar, ajudar a evoluir, assumem atitudes destrutivas. A pergunta que deve ser feita é qual ou quais seriam as intenções dessas orientações? Ideológicas? Materiais, representando grupos com outros interesses? Fica a impressão de que, nos bastidores, o caminho para enfraquecer as academias e saúde públicas está sendo devidamente pavimentado. Negar valor e desqualificar, com intenções destrutivas, revela profunda ignorância, ou desonestidade intelectual. O sentimento de desolação é nítido em nossos corredores.

Outro setor a se destacar é o SUS. É um sistema de saúde muito bem elaborado para o atendimento de toda a população. Foi introduzido sem base administrativa adequada na ocasião. Gerenciá-lo foi, e é, um desafio. A falta de recursos e a burocratização não impediram que os bons resultados surgissem, e se mostrou indispensável. É evidente que esse sistema deve ser aprimorado, precisando, para isso, vontade política, com pessoas preparadas. Sua importância, para a saúde no País, é indiscutível. Muitos estão migrando de planos suplementares, aumentando mais a sua responsabilidade. O que teria ocorrido se o SUS não tivesse atuado como atuou?

Importante enaltecer a rede privada hospitalar, abrindo portas, quando a pública estava prestes a se esgotar. Essa associação foi um sinal de maturidade e responsabilidade, colocando recursos à disposição, recebendo elogios de todos. Lembramos que boa parte de seus profissionais foi formada na rede pública.

Para concluir, essa pandemia evidenciou o que temos de melhor, ou seja, recursos humanos altamente qualificados, que souberam reagir à altura em um momento muito difícil. Esperamos que os setores políticos tenham aprendido algo com essa pandemia e que sejam no futuro representados por pessoas com esses valores, e que nos façam ter orgulho deles também.

Charles Mady é professor associado do Instituto do Coração (Incor) e da Faculdade de Medicina da USP

Publicado no Jornal da USP

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