Ao rejeitar vacina, Bolsonaro retrocede um século de progresso vacinal

Ao invocar o direito individual dos brasileiros de não se vacinarem contra a COVID-19, o presidente Bolsonaro está ignorando as lições de 1904 – minando um século de trabalho árduo no combate às doenças no Brasil.

O mundo aguarda ansiosamente o lançamento de várias vacinas COVID-19, mas o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, não.

“Eu não vou aceitar. É meu direito ”, disse ele em uma transmissão de mídia social em 26 de novembro.

Bolsonaro, que contraiu a Covid-19 em julho, também criticou as máscaras. Ele e seus apoiadores mais fiéis se opõem a qualquer sugestão de vacinação obrigatória contra o coronavírus.

A resistência à vacina tem uma longa história no Brasil.

Em novembro de 1904, milhares de pessoas na cidade do Rio de Janeiro protestaram contra a vacinação contra a varíola ordenada pelo governo em uma revolta famosa que quase terminou com um golpe.

Modernizando o Brasil

A vacina contra a varíola havia chegado ao Brasil quase um século antes. Mas as seringas eram longas, deixavam a pele com marcas de bexigas e podiam transmitir outras doenças, como a sífilis.

Entre 1898 e 1904, apenas 2% a 10% da população do Rio era vacinada anualmente, de acordo com o historiador Sidney Chalhoub. Em 1904, a varíola matou 0,4% dos residentes do Rio – uma porcentagem maior da população do que as vítimas da Covid-19 na cidade de Nova York este ano.

Mas essas não foram as únicas razões pelas quais o Brasil tornou a vacinação obrigatória em 1904.

Como parte de um plano de “modernização” para atrair imigração europeia e investimento estrangeiro, o presidente Rodrigues Alves se comprometeu a erradicar epidemias – não apenas a varíola, mas também a febre amarela e a peste bubônica.

Para livrar o Rio de Janeiro, então a capital do país, dos riscos sanitários e abrir espaço para avenidas e edifícios de estilo parisiense, centenas de cortiços foram demolidos entre 1903 e 1909. Quase 40.000 pessoas – a maioria afro-brasileiros, mas também imigrantes italianos, portugueses e espanhóis pobres – foram expulsos e retirados do centro do Rio. Muitos ficaram desabrigados, forçados a se reinstalar em encostas próximas ou em áreas rurais distantes.

Enquanto isso, agentes de saúde acompanhados por policiais armados desinfetavam sistematicamente as residências com enxofre que destruía móveis e outros pertences – quer os moradores os recebessem ou não.

Conspiração e barricadas

Políticos e militares que se opuseram ao presidente Alves viram oportunidade na indignação que essas iniciativas de saúde causaram. Eles alimentaram o descontentamento.

Com a ajuda de organizadores sindicais e editores de notícias, os oponentes de Alves lideraram uma campanha contra os mandatos de saúde pública do Brasil ao longo de 1904. Os jornais noticiaram sobre desinfecções domiciliares violentas e vacinações forçadas. Senadores e outras figuras públicas declararam que a vacinação obrigatória invadiu as casas e corpos das pessoas.

Em meados de novembro daquele ano, milhares de manifestantes se reuniram em praças públicas para protestar contra os esforços de saúde pública. A polícia do Rio reagiu com força desproporcional, desencadeando seis dias de agitação na cidade. Uma multidão racialmente diversa de estudantes, trabalhadores da construção civil, trabalhadores portuários e outros residentes revidou, armados com pedras, utensílios domésticos ou as ferramentas de seu comércio, virando bondes para barricar as ruas.

Charge ilustra Revolta da Vacina no início do século XX no Rio de Janeiro.

Enquanto isso, nos bastidores, os conspiradores estavam mobilizando jovens cadetes militares. O plano deles: derrubar o governo de Alves.

Seu esquema foi frustrado quando o presidente pediu ao Exército e à Marinha que contivessem os manifestantes e prendessem os supostos insurgentes. A grande revolta das vacinas no Brasil foi logo reprimida.

A linguagem dos direitos

Posteriormente, os jornais retrataram os manifestantes como uma massa ignorante, manipulada por políticos astutos. Eles consideraram um dos líderes populares do levante, Horácio José da Silva – conhecido como “Prata Negra” – um “bandido desordeiro”.

Mas a revolta da vacina no Brasil foi mais do que uma manipulação política cínica. Ao vasculhar os arquivos, historiadores como eu estão aprendendo o que realmente motivou a revolta.

As características violentas e segregacionistas do plano urbano de Alves são uma resposta óbvia. No Brasil do início do século 20, a maioria das pessoas – mulheres, aqueles que não sabiam ler, os desempregados – não podiam votar. Para esses brasileiros, as ruas eram o único lugar onde suas vozes eram ouvidas.

Mas por que eles se oporiam de forma tão violenta aos métodos que controlam a propagação de doenças?

Investigando jornais e registros legais, descobri que os críticos da iniciativa de saúde pública do Brasil de 1904 muitas vezes expressaram sua oposição em termos de “inviolabilidade do lar”, tanto nas ruas quanto nos tribunais.

Para a elite brasileira, invocar esse direito constitucional era proteger a privacidade de suas famílias, onde os homens governavam sobre esposas, filhos e servos. Agentes de saúde pública ameaçaram essa autoridade patriarcal exigindo acesso às casas e ao corpo das mulheres.

Homens e mulheres pobres do Rio também tinham valores patriarcais. Mas para eles havia mais do que privacidade em jogo em 1904.

Ao longo do século 19, os afro-brasileiros escravizados formaram famílias e construíram casas, até mesmo em plantações, abrindo espaços de relativa liberdade de seus senhores. Depois que a escravidão foi abolida em 1888, muitos afro-brasileiros libertos dividiram cortiços lotados com imigrantes. Na época da campanha de vacinação de Alves, os pobres do Rio já lutavam contra o despejo e a violência policial há décadas.

Para os negros brasileiros, então, defender seus direitos de escolher o que fazer – ou não fazer – com suas casas e corpos era parte de uma luta muito mais longa pela inclusão social, econômica e política.

Experiência de aprendizagem mortal

Quatro anos após a revolta de 1904, o Rio foi atingido por outra epidemia de varíola. Com tantas pessoas não vacinadas, as mortes dobraram; quase 1% da cidade morreu.

Foi uma experiência de aprendizado mortal. A partir daí, os líderes brasileiros enquadraram as vacinas obrigatórias contra a varíola, o sarampo e outras vacinas como meio de proteger o bem comum e investiram em campanhas educacionais para explicar o porquê. Ao longo do século 20, as vacinações fizeram muito sucesso no Brasil. Desde a década de 1990, 95% das crianças foram vacinadas, embora os números estejam caindo.

Hoje, o Brasil é um dos países mais atingidos pela pandemia do coronavírus. Como no passado, os afro-brasileiros estão sofrendo mais do que os outros. Ao invocar o direito individual dos brasileiros de não se vacinarem contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro está ignorando as lições de 1904 – minando um século de trabalho árduo no combate às doenças no Brasil.

Pedro Cantisano é professor assistente de História na Universidade de Nebraska Omaha

Traduzido por Cezar Xavier

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