O retorno da Guerra no Saara Ocidental: o que você precisa saber

Território do noroeste da África, rico em recursos naturais, está ocupado militarmente desde 1975 pelo Reino do Marrocos.

Ancião Saarauí

Em 13 de novembro, eclodiu a guerra no Saara Ocidental, considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) a última colônia africana. Passadas quase três décadas de um cessar-fogo sem paz e de promessas inócuas, os saarauís retomam as armas. O fracasso do processo diplomático é de todo o mundo.

Por Moara Crivelente e Rodrigo Duque Estrada Campos*

O território do noroeste da África, rico em recursos naturais, está ocupado militarmente desde 1975 pelo Reino do Marrocos. Um acordo secreto realizado entre Espanha, a então potência colonizadora, com Marrocos e Mauritânia —que se retirou da contenda em 1979— transferiria o Saara Ocidental aos dois países. Mas o chamado “Acordo de Madri” é irregular e, juridicamente, a Espanha ainda é o país colonizador, mesmo tendo deixado o território há décadas, pois não completou o processo de descolonização pelo que era responsável.

De 1975 a 1991, a Frente Popular de Libertação de Saquía el Hamra e Río de Oro (Polisario) travou árdua batalha contra o Marrocos e conseguiu libertar uma porção do seu território, mas cerca de 80%, a porção mais rica, segue sob a ocupação marroquina, assim como parte da população saarauí.

O acordo de cessar-fogo foi intermediado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Africana, dando fim aos 16 anos de intensa guerra no deserto. Estados Unidos, França e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) haviam apoiado o Marrocos no contexto de bipolaridade da Guerra Fria, enquanto a Argélia, Cuba e outros países apoiaram a Frente Polisario, em solidariedade terceiro-mundista. Em 1976, a Polisario proclamou a República Árabe Saarauí Democrática (RASD), reconhecida por dezenas de países e membro da União Africana, mas cujo território segue ocupado e fragmentado.

Foi a Argélia que acolheu os saarauís e cedeu parte de seu território aos acampamentos de refugiados, após o Marrocos começar a expulsar a população do Saara Ocidental com bombas de napalm e fósforo branco, em 1975, enquanto transferia seus próprios cidadãos, tornados colonos, ao território tomado. O Saara Ocidental nunca foi considerado parte do Marrocos. Uma opinião consultiva do Tribunal Internacional de Justiça, publicada antes da invasão marroquina, atesta a inexistência de “laços de soberania territorial entre o território do Saara Ocidental e o Reino do Marrocos ou a entidade da Mauritânia”. Portanto, a Frente Polisario não é um movimento separatista, como afirma parte da mídia, mas sim a representante legítima do povo saarauí. O mesmo documento da Corte é claro quanto à necessidade de “aplicação da resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral na descolonização do Saara Ocidental e, em particular, do princípio de autodeterminação através da expressão livre e genuína da vontade do povo daquele Território”.

Com o cessar-fogo, institui-se a MINURSO – Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental, uma operação de paz que tinha dois objetivos: observar o respeito das partes ao acordo de cessar-fogo e realizar um referendo de autodeterminação em que o povo saarauí possa escolher entre independência ou autonomia, integrando o Marrocos. Passadas três décadas, o referendo nunca foi realizado. A maioria dos saarauís considera que a MINURSO fracassou, pois além de não ter cumprido seu mandato, serviria para que o Marrocos consolide seu domínio sobre o território e explore os recursos naturais da região, como fosfato, peixe, energias renováveis e gás natural em potencial.

A MINURSO é a única missão da ONU que não tem mandato para monitorar violações aos direitos humanos, devido ao veto que a França impõe em defesa do Marrocos quando o tema é abordado no Conselho de Segurança. Relatórios de diversas organizações internacionais apontam graves violações dos direitos humanos do povo saarauí nos territórios ocupados, sob um regime de exceção imposto pelo Marrocos. O documentário brasileiro Um Fio de Esperança: Independência ou Guerra no Saara Ocidental investigou esse tema, entrevistando diversos ativistas sobreviventes que foram torturados nas prisões secretas marroquinas.

Contexto da mais recente escalada

Os territórios ocupados pelo Marrocos são separados das zonas liberadas por um muro de mais de 2.700 km de extensão, construído pelo Marrocos na década de 1980. Ao seu redor, milhões de minas terrestres ainda ativas colocam em risco a vida dos saarauís, tornando as zonas liberadas um lugar inóspito. Os artefatos continuam causando vítimas e os sarauís têm trabalhado com a ONU e outras entidades pela sua remoção e destruição. É recente a decisão da liderança saarauí, a Frente Polisario e o governo da RASD, de reconstruir e habitar o território liberado à medida que avançam esforços pela retirada das minas.

Ao sul do muro e próximo ao oceano Atlântico, na região de Guerguerat, o Marrocos abriu uma brecha que usa para o escoamento de mercadorias em direção à Mauritânia, e de lá para a África subsaariana. Para sermos claros: a passagem liga o território ocupado e o território liberado do Saara Ocidental; fica na zona desmilitarizada e tampão. Seu cruzamento por caminhões marroquinos, com a anuência do governo, é uma violação dos acordos de cessar-fogo na medida em que a brecha aberta pelo Marrocos não existia na época em que foram firmados e está situada em território não só neutro como, para todos os efeitos, território do Saara Ocidental.

Em 13 de novembro, o Marrocos enviou forças ao local para atacar um grupo de saarauís que protestava pacificamente contra a brecha desde outubro. A Frente Polisario reagiu para proteger os civis e o seu território liberado, considerando então nulo o cessar-fogo e decretando o retorno à luta armada. A MINURSO, presente, havia sido incapaz de garantir o cumprimento dos termos do cessar-fogo. Além disso, com trocas frequentes devido ao longo impasse no processo diplomático, a posição de Enviado Especial do Secretário-Geral da ONU para o Saara Ocidental está vaga há um ano e meio. Portanto, não há negociações em curso.

Soma-se a isso o fato de o Marrocos ter construído uma infraestrutura econômica altamente lucrável de exploração, comercialização e transporte dos recursos naturais nos territórios ocupados, violando o direito internacional —como as Convenções de Genebra de 1949— que proíbe tais atividades em territórios sob ocupação militar e, neste caso, pendente de descolonização. A pilhagem, pelo Marrocos, do que ficou conhecido como “recursos de sangue”, tem sido denunciada por diversas associações saarauís e internacionais, como a WSRW – Western Sahara Resource Watch, que realiza campanhas internacionais para dissuadir empresas em diversos países de importar recursos dos territórios ocupados.

Por isso, para os saarauís, já é mais de meio século de espera. Enquanto isso, entre promessas e intentos por uma solução negociada, através da implementação do referendo, o povo saarauí vê suas demandas serem diluídas nas sucessivas propostas apresentadas por representantes da ONU e pelo governo marroquino, o que se traduz num atropelo àquele que é um princípio basilar da entidade mundial, o princípio de autodeterminação.

O exército da RASD e a Frente Polisario, defendendo o território da invasão, lançaram ofensivas contra as bases militares marroquinas espalhadas por distintos pontos do muro, reivindicando ganhos táticos mesmo com um exército numericamente inferior. A Argélia tem manifestado preocupação com o desenrolar da situação, instando a ONU a intervir por um novo cessar-fogo. Fontes do exército e da diplomacia argelina, porém, demonstram apoio à causa saarauí. Note-se que o Marrocos e a Argélia já travaram uma guerra em 1963, quando o exército marroquino buscou anexar porções do território argelino. Há risco, por este e outros fatores, de a guerra assumir uma dimensão regional, atraindo atores poderosos, com consequências imprevisíveis para a região do Magrebe e o Sahel e, claro, para a autodeterminação do povo saarauí.

Embora cresça a atenção ao conflito relativamente ao apagão midiático imperante no período de cessar-fogo, um período de “silêncio”, ainda há pouca cobertura sobre o estado de guerra, que já entra em sua segunda semana. A imprensa marroquina silencia-se e a europeia promove uma narrativa quase esquizofrênica, ao menosprezar ou ignorar o fato.

Como o Brasil contribui

Cresce no Brasil e no mundo o movimento de solidariedade e em defesa do direito do povo saarauí à autodeterminação. No país, entidades como o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) —que há anos atua nesta causa realizando visitas aos campos de refugiados, posicionando-se e produzindo entrevistas e reportagens— e a Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saarauí (Asaaraui) buscam contribuir para difundir informações deste conflito desconhecido. Assim, também monitoram como o país incide sobre a questão.

Tanto a WSRW quanto o documentário brasileiro Um fio de esperança apontaram que o Brasil importa os recursos de sangue do Marrocos. Recentemente, o Cebrapaz também relatou casos em que o país importou fosfato, usado para a fabricação de fertilizantes, proveniente do Saara Ocidental ocupado, mas comercializado pelo Marrocos. Já tem sede no Brasil a estatal marroquina OCP, que faz o comércio deste recurso tão essencial para a agricultura brasileira, mas cuja origem é ilegal. Sobre isso, a diplomacia brasileira parece fechar os olhos.

Historicamente, o Itamaraty manteve uma posição de neutralidade com relação ao conflito, delegando sua resolução ao âmbito da ONU e reconhecendo o direito do povo saarauí à autodeterminação por meio de referendo. Por considerar que a solução deve ser negociada, o Brasil nunca reconheceu a RASD, ao contrário de quase todos os países latino-americanos e caribenhos. Com os desdobramentos recentes, entretanto, a Chancelaria adotou uma mudança radical de postura. Em nota emitida em 18 de novembro, disse que “o Brasil espera que sejam assegurados, de maneira desimpedida, o tráfego e os fluxos comerciais no passo de Guerguerate”.

A declaração é inusitada e, espera-se, desinformada —ou irregular— pois o país opta por se posicionar a favor do Marrocos, contrariando os próprios termos do cessar-fogo que o Itamaraty defende na nota. A diplomacia também se contradiz ao dizer que apoia o processo “em curso no âmbito das Nações Unidas com vistas a uma solução justa e mutuamente aceitável para a determinação do status final do território”, o que pressupõe neutralidade. Nenhum país no mundo reconhece a soberania marroquina sobre o território contestado, muito menos a ONU, que incluiu o Saara Ocidental na lista de territórios não-autônomos pendentes de descolonização ainda em 1963.

Portanto, com a deterioração da situação, diante do impasse diplomático benéfico ao Marrocos e da negligência internacional, ou a aliança com a potência ocupante, o que é posto em xeque não é só a descolonização do Saara Ocidental, como o próprio arcabouço jurídico e as conquistas políticas que a ONU concernentes ao direito de autodeterminação dos povos e aos processes de descolonização.

No Brasil, podemos começar por mudar de atitude com relação ao conflito ao nos somar a dezenas de outros países que, enxergando a justiça da demanda do povo saarauí por descolonização e independência nacional, já reconheceram a RASD. O Brasil sempre prezou por uma postura conciliadora a nível internacional, apoiando processos diplomáticos, mas é inaceitável que passadas tantas décadas de estagnação, neste caso, o país não só não assuma uma posição assertiva a favor da paz justa e sustentável, como ainda retroceda, conforme mostrou a nota do Itamaraty.

A Frente Polisario, que reiteradamente afirmou seu compromisso com a diplomacia, passadas tantas décadas de espera, investe agora numa guerra de libertação total do seu território. Que a situação tenha escalado a este ponto diz muito dos limites de instituições como a ONU e da falta de eficácia do direito internacional diante do poder.

(*) Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Universidade de Coimbra e diretora do CEBRAPAZ.

(*) Rodrigo Duque Estrada Campos é doutorando em Política na Universidade de York e co-diretor do documentário Um fio de esperança: independência ou guerra no Saara Ocidental.

Fonte: Opera Mundi