Adeus, Maradona, o maior depois de Pelé

Astro argentino do futebol faz parte da galeria dos gênios da humanidade.

Poucos são os jogadores de futebol na história que podem ser descritos como capazes de chegar perto do gênio de Diego Armando Maradona, falecido neste triste dia 25 de novembro de 2020 aos 60 anos de idade. Nenhum seria capaz de repetidamente protagonizar jogadas mágicas como as dele, em que o futebol encontra a arte. Aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço de fruição, de tradução de um conjunto de fatores conjugados, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível.

Maradona era o tipo de jogador que sistematicamente fazia toques precisos e elegantes, dribles e passes milimétricos. Tocava bem a bola, batia bonito na gorducha, amaciava no peito, baixava com elegância no gramado. Driblava em espaços mínimos, cobrava faltas com precisão milimétrica, dava passes de 40 metros com perfeição. Enfim: sabia tudo e mais um pouco. Não há como não lamentar profundamente essa perda, uma luz que se apaga em meio à escuridão da obscuridade na política e do misticismo neoliberal na economia, do patriotismo crasso, canhestro, cru da extrema direita.

Sai de cena alguém que proporcionou no futebol a mesma felicidade de quem na literatura deu voz a Diadorim e Capitu, dona Benta e Saci Pererê. De quem produziu obras-primas como Guerra e paz e Irmãos Karamazov. Alguém da galeria de Louis Armostrong e Pixinguinha, Noel Rosa e Chico Buarque de Holanda. Maradona pertence ao panteão dos gênios da humanidade, esses que, havendo os séculos dos séculos, serão lembrados como a essência do que de melhor a humanidade produziu.

Fora do mundo do futebol, acumulou polêmicas, que precisam ser entendidas no âmbito da complexidade humana. Rebelou-se contra um juiz que determinou cumprimento de suas obrigações de pai. “Um juiz me obrigou a dar dinheiro a ele, mas não pode me obrigar a sentir amor por ele”, disse ao falar do filho já então adolescente nascido em setembro de 1986 na Itália. Foi acusado de agredir mulheres e envolveu-se em brigas físicas. Mas também marcou sua trajetória com ações políticas de perfil democrático e progressista.

A sua genialidade era mesmo com a bola no pé. O escritor uruguaio Eduardo Galeano descreve um gol dele em 1973 num jogo das equipes infantis de Argentinos Juniors e River Plate, em Buenos Aires. “O número 10 do Argentinos recebeu a bola de seu goleiro, evitou o beque central do River e começou a corrida. Vários jogadores foram ao seu encontro: passou a bola por fora de um deles, entre as pernas de outro, e enganou mais um de calcanhar. Depois, sem parar, deixou no chão paralisados os zagueiros e botou o goleiro caído no chão, e se meteu caminhando com a bola na meta rival. No campo, tinham ficado sete meninos fritos e quatro que não conseguiam fechar a boca”, escreveu.

Segundo Galeano, aquela equipe de garotinhos, os Cebollitas, estava invicta há cem partidas e tinha chamado a atenção dos jornalistas. Um dos jogadores, chamado Veneno, que tinha treze anos, declarou: “Jogamos para nos divertir. Nunca vamos jogar por dinheiro. Quando entra dinheiro, todos se matam para ser estrelas, e então chega a hora da inveja e do egoísmo.” Falou abraçado ao jogador mais querido de todos, que também era o mais alegre e o mais baixinho – Diego Armando Maradona, que tinha doze anos e acabava de fazer aquele gol incrível, narrou Galeano.

Ele diz que Maradona tinha o costume de pôr a língua de fora quando estava em pleno impulso. “Todos os seus gols tinham sido feitos com a língua de fora. De noite dormia abraçado com a bola e de dia fazia prodígios com ela. Vivia numa casa pobre de um bairro pobre e queria ser técnico industrial”, escreveu. Na Copa do Mundo de 1986, segundo Galeano o Mundial de Maradona, ele mostrou o auge da sua genialidade. Contra a Inglaterra, ele vingou com dois gols de esquerda o orgulho pátrio ferido nas Malvinas: fez um com a mão esquerda, que ele chamou de “mão de Deus”, e o outro com a perna esquerda, depois de ter derrubado no chão a defesa inglesa.

Os desacertos de Maradona não obnubilam sua brilhante trajetória. Em termos futebolísticos, por vários critérios ele fica distante de Pelé, mas muito à frente da média dos considerados gênios da bola. Fora do futebol, o rei brasileiro não tem no currículo episódios com a natureza dos que puseram Maradona nas páginas negativas do noticiário, mas também ostenta polêmicas. Mas foi, nas palavras de Gilberto Freyre, em termos de genialidade, equivalente a Machado de Assis, Euclides da Cunha, Heitor Villa-Lobos e Oscar Niemeyer.

Como Maradona, escreveu Galeano, nasceu em casa pobre, num povoado remoto, e chegou ao cume do poder e da fortuna, “onde os negros têm entrada proibida”. “Fora das canchas, nunca doou um minuto do seu tempo e jamais uma moeda caiu de seu bolso. Mas os que tivemos a sorte de vê-lo jogar, recebemos dele oferendas de rara beleza: momentos desses tão dignos de imortalidade que a gente pode acreditar que a imortalidade existe”, constatou.  

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