Estupro culposo: isso existe?

Infelizmente, a realidade nos Tribunais é que as mulheres não são consideradas vítimas e sim culpadas pela violência que sofrem.

Foto: Shutterstock

A polêmica sobre o assunto veio à tona nas redes sociais e no Congresso após a reportagem do site The Intercept Brasil ser publicada no dia 03 novembro¹, com cenas da audiência do caso de Mariana Ferrer. O caso aconteceu em dezembro de 2018, em uma casa noturna em Jurerê Internacional, em Florianópolis. Na época, a jovem tinha 21 anos e era promoter do evento em que foi abusada. Ela se recorda vagamente de ter sido levada para um camarote reservado do local e após chegar em casa e perceber que tinha sêmen e sangue em suas roupas íntimas, entendeu que foi vítima de um crime. O julgamento em que o acusado foi absolvido aconteceu em setembro deste ano, mas só agora as imagens da audiência foram reveladas e uma pergunta inundou as redes: estupro culposo existe?

Para esclarecer essa polêmica, é importante explicar que o Ministério Público (MP), que havia oferecido a denúncia como estupro de vulnerável (que ocorre quando a pessoa é menor de 14 anos, quando a pessoa apresenta alguma enfermidade ou doença mental que afete seu discernimento ou quando uma pessoa não possa oferecer resistência, como em casos de embriaguez ou uso de substâncias entorpecentes, sejam o consumo voluntário ou não), mas nas alegações finais, pleiteou a  improcedência total da denúncia, com a absolvição do acusado pela prática do crime de estupro de vulnerável, sob o argumento de que não há provas suficientes da materialidade do delito.

Como o crime de estupro é uma ação penal pública incondicionada, ou seja, independe da vontade da vítima para ser iniciada, é uma tarefa do Ministério Público realizá-la. Na sentença, o juiz declara que, por essa razão, não há qualquer possibilidade de o juiz condenar um acusado quando o representante do Ministério Público requer a absolvição, fato que não é totalmente verdade, pois quem decide se vai condenar ou não é o juiz da causa e ele não está obrigado necessariamente a seguir a opinião do Ministério Público ou da defesa.

Quando continuamos a ler a sentença, o juiz do caso, além de citar sua impossibilidade em condenar quando o Ministério Público absolve, citou Rogério Greco ao falar da subjetividade do dolo para reconhecer o estupro de vulnerável, bem como citou Masson para falar sobre a vulnerabilidade do caso, ao pontuar que “Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”. Para o juiz, como a vítima tinha 21 anos, só era possível ser considerada vulnerável se ficasse comprovado sua incapacidade de oferecer resistência à investida do agente criminoso, bem como haja dolo na conduta do agressor e ciência da vulnerabilidade que acomete a vítima. Porém, ele considerou que não consta do processo demonstração suficiente da ausência de consentimento por parte da vítima, decorrente da impossibilidade de oferecer resistência.

Este conjunto de inclinações do juízo do caso levou ao veredito final, não a mera falta de provas. Até porque, em casos de estupro, é sabido que nem sempre a vítima consegue provar que não consentiu com a relação ou até mesmo que não tinha condições psicológicas de tal consentimento. E a palavra da vítima deveria ter algum peso, afinal ela é a vítima. E se esse tipo de postura do juízo for continuada, nenhuma mulher conseguirá provar o estupro marital, por exemplo.

Infelizmente, a realidade nos Tribunais é que as mulheres não são consideradas vítimas e sim culpadas pela violência que sofrem. Como ficou demonstrado no show de horrores impetrado pelo advogado da defesa, ao mostrar as fotos sensuais que a vítima fez, posições “ginecológicas”, para demonstrar como a vítima não era inocente e sim provocadora, que jamais teria uma filha do “nível” da vítima e que a jovem manipulava a história de ser virgem (apesar de exames comprovarem a conjunção carnal, ruptura do hímen e sangue e sêmen na roupa íntima da vítima) e que suas lágrimas eram de crocodilo. A vítima, aos prantos, implora ao Juiz respeito, ao que ele avisa que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar uma água, se limitando a dizer para o advogado de defesa para “manter bom nível”.

Essa mesma culpabilização da vítima acontece na sociedade, quando a mulher vítima de abuso é questionada sobre a roupa que vestia, as companhias que tinha, o local que estava, se havia provocado ou se havia ou não ingerido bebidas alcoólicas ou drogas. E as instituições públicas são reflexos da sociedade na qual estão inseridas. Essas pessoas que representam instituições são fruto dessa sociedade, que questiona a vítima pela violência que sofrem. Mesmo as fotos apresentadas pela defesa não terem qualquer relação com o caso, o Juiz e o Ministério Público as viram; o advogado as apresentou por considerá-las uma estratégia de defesa válida e eficaz. Eram o juiz, o promotor e o advogado ao considerarem, por ação ou omissão, que o ultraje infringido à jovem bem como a exposição de sua intimidade não ligada ao processo tenha o mínimo de conteúdo relevante para o caso. E isso acaba influenciando o seu julgamento, não apenas o do juiz específico do caso, mas de todos os juízes que julgam casos assim. Isso porque a condenação da vítima já está impregnada no judiciário e na sociedade brasileira.

No Brasil Imperial, o estupro era um crime de honra. Então a mulher estuprada deveria sair gritando pelas ruas que foi violentada e, se possível, dizer o nome do seu estuprador, para recuperar sua honra. Entretanto, para haver estupro, era necessário que a mulher fosse virgem. Se fosse solteira e não virgem, não teria honra para perder. Se casada, era a honra do marido que estava em jogo. E sobre essa honra também versava o adultério, já que o marido traído era autorizado a matar a mulher adúltera e o seu amante, caso o amante fosse da mesma classe social. Se fosse um fidalgo, poderia requerer dele uma indenização. O sangue ou o dinheiro restabeleciam, perante a sociedade, a honra do homem. A da mulher era irrecuperável. Por isso, desde que este país foi constituído, as mulheres temem a exposição pública, denunciar um crime e ser culpada pela violência que sofreram.

O estupro só passou a ser considerado estupro na legislação brasileira em 1890, no Brasil República. Mas a herança colonial o manteve como um crime de honra, que atingia a honestidade das famílias e era considerado um ultraje público, onde a maior violência contra a vítima era o que iriam pensar dela, por ser desonrada, não pela violência sofrida. Em 1940, o estupro foi revisto na legislação e passou a ser considerado um crime contra os costumes, se mantendo como um crime contra os valores morais da sociedade, não um crime contra a vítima. Ali o Código Penal diferenciava a “mulher honesta” e a “mulher virgem” e permitia ao estuprador, que se casasse com a vítima, ter anulada a pena por seu crime. Inclusive, a extinção da punibilidade caso o agressor se casasse com a vítima só foi revogada em um passado bem recente, 2005, pela Lei 11.106/2005.

Mas somente em 2009, quando Código Penal foi alterado e incluiu o estupro como um crime contra a dignidade sexual, contra a dignidade da pessoa humana. Da chegada dos portugueses em 1500 até 2009 pesava sobre as mulheres um comportamento “honrável”, “casto”, que, em suas vestes, comportamentos e fotos, não deixassem a menor dúvida que não estavam provocando o abusador e não eram elas as responsáveis pelo crime do qual foram vítimas. 

São muitos séculos culpabilizando a mulher pelas violências sofridas e isto o sistema de justiça a não defender a vítima quando ela está sendo desqualificada pela defesa do agressor, como se a sua vida pregressa fosse um atenuante e até mesmo um excludente para a violência sofrida. E as mudanças na Lei não são resultado da vontade espontânea dos legisladores e sim de uma resposta à pressão dos movimentos internacionais que buscam o fim da violência contra as mulheres.  Ainda há um abismo entre os direitos das mulheres no papel, conquistados com muita luta, e na prática.

O vídeo da vítima aos prantos, cercada por homens condescendentes com a agressividade em que o advogado de defesa transforma a vítima em culpada pela violência sofrida, causaram espanto, incredulidade e nojo na maioria das pessoas. O vídeo só demonstra porque as mulheres não denunciam os crimes dos quais são vítimas. O tratamento da forma com que é oferecido às vítimas mulheres, ao invés de ser humanizado e reparador dos danos, considerando todas as sequelas que tal crime deixa em suas vítimas, não é dispensado nem a acusados de crimes hediondos. Ali temos uma vítima destroçada pela maneira como estava sendo tratada por um homem, enquanto outros três homens assistem a cena passivamente, todos representantes das instituições que deveriam garantir a Justiça em nosso país. E eles não fizeram cessar as agressões, inclusive achando normal, porque a violência contra a mulher é prática cotidiana e tolerável em nossa sociedade.

É a vítima sofrendo novamente um abuso, desta vez perpetrada e acompanhada diretamente pelo Estado. É o Estado reforçando a violência contra a mulher. Vimos àqueles que deveriam proteger as vítimas sendo coniventes com a violação de direitos, mais uma faceta da prática cotidiana de violência institucional, suplantando o conceito de dignidade da pessoa humana preconizada na Constituição Cidadã de 1988 e em vários tratados internacionais que o Brasil é signatário. Por sinal, foi apresentado o projeto de Lei nº 5091/2020, alterando a lei de abuso de autoridade, de forma a tipificar a conduta da prática dessa violência.

Desta forma, o “estupro culposo” tão questionado, apesar de não ser mencionado nas alegações finais do MP, até por inexistir no Código Penal, acabou sendo um termo que viralizou porque expôs a postura do Promotor em, apesar de reconhecer a conjunção carnal e atos libidinosos diversos, afirma que o acusado não tinha conhecimento da incapacidade da vítima em entender o que estava acontecendo e oferecer resistência.  Não há dúvidas que a relação sexual aconteceu, a dúvida do MP era sobre a incapacidade da vítima de consentir tal relação, da sua vulnerabilidade. Ou seja, como o MP havia pedido a condenação do acusado por estupro de vulnerável, não havendo como comprovar tal vulnerabilidade, era necessário absolver o réu por atipicidade, pois não houve dolo por parte do acusado 

É, infelizmente, a mais antiga das estratégias da defesa usar a régua da moral, do estado mental, da conduta sexual e a vida pregressa das vítimas para desmerecer sua palavra e atenuar a violência sofrida. E a Justiça permanece com os bem olhos vendados para essa estratégia de revitimizar, de expor, de praticar a violência contra a mulher no curso do processo, que não tem a menor relação com os fatos que são objetos de análise no processo. E o advogado de defesa, ao trazer fotos que não tenham relação com o processo, questionar o trabalho da vítima, usar de termos chulos, ao pairar na vítima a imagem de uma menina que sensualiza e que tem plena ciência da sua “volúpia”, ao contrário de uma vulnerável menor de 14 anos, faz com que, em razão dessa moral obrigatória feminina do recato, da virgindade,  da honra, do casto, das vestes, dos comportamentos, das imagens, esta ainda seja uma prática de defesa de réus permitidas pela ética advocatícia e pelo Judiciário brasileiro.

Assim, o estupro culposo pode não existir na Lei, mas existe sim esta prática nefasta cotidiana do julgamento da vítima e não do agressor em nosso país, em relação aos crimes contra as mulheres.

Fonte: Conjur

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