Eleição foi pautada por temas nacionais e antecipou agendas de 2022

“Existe uma campanha que é municipal, mas, lateralmente, também é estadual e federal”, diz

A primeira eleição municipal sob o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro e sob a pandemia de Covid-19 foi pautada mais por temas nacionais do que locais. Bandeiras como o desemprego e a perda de renda dominaram o debate eleitoral e, assim, anteciparam outra eleição – a presidencial, de 2022.

“2022 está aqui, mais do que presente nesta eleição”, declarou ao Valor Econômico o professor Marco Aurelio Ruediger, diretor de análises de políticas públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV/DAPP). “Há uma antecipação de agendas. Existe uma campanha que é municipal, mas, lateralmente, também é estadual e federal.”

Na opinião de Ruediger – que é doutor em Sociologia –, as condições de vida do povo têm sido fortemente impactadas por problemas que, embora tenham reflexo direto no espaço concreto das cidades, exigem articulação federativa, envolvendo os estados e o poder central. É o que causa esse transbordamento entre as diferentes esferas de poder.

A caixa de ressonância desse fenômeno é a internet, em especial as redes sociais, nas quais se concentram, hoje, as campanhas eleitorais. “A maior novidade é que as redes se tornaram um campo permanente de mobilização e campanha política”, afirma Ruediger. A influência das redes não ocorre mais apenas nos períodos eleitorais. “Existe uma campanha permanente de quem opera no campo da política. Não tem fim. É um continuum na busca de espaço e posicionamento pelos atores [políticos], com maior pico em torno das eleições.”

Nas redes, o debate social se reflete de maneira “sangrenta”, diz o professor. Um exemplo é a polarização sobre o que fazer para combater a Covid-19: priorizar a saúde, com a adoção de regras de isolamento mais firmes, ou a economia, acelerando a volta às atividades sob o formato e o ritmo pré-pandemia. Trata-se de um falso dilema, adverte Ruediger. Dar atenção à saúde do cidadão ajuda a economia ao, por exemplo, evitar gastos hospitalares mais elevados para tratar de casos que poderiam ter sido evitados. Os temas estão interligados. “O negacionismo fica o tempo todo se debatendo com a discussão científica sobre o vírus.”

Uma diferença das eleições deste ano em relação às anteriores é que, se antes havia o protagonismo de uma ou outra rede) – como ocorreu com o Facebook em votações mais antigas e, posteriormente, com o WhatsApp –, desta vez prevalece a concepção de ecossistema. Houve articulação, pelos candidatos e suas equipes, de diferentes plataformas digitais. A sofisticação nesse manuseio ficou muito maior.

“As redes trazem uma complexidade gigantesca para o processo político”, diz Ruediger. Detectar notícias falsas ficou mais difícil. O ponto de partida das “fake news” pode, eventualmente, ser uma notícia verdadeira. Por exemplo, as declarações do presidente americano, Donald Trump, contestando o resultado da votação que deu vitória ao rival Joe Biden na recente eleição presidencial dos EUA.

A informação de que Trump fez isso, embora sem apresentar qualquer prova, é verdadeira. A partir desse fato, no entanto, é fácil criar uma corrente tortuosa de “fake news”. Um vídeo sobre o assunto publicado em um site respeitado pode receber comentários questionando a lisura da votação eletrônica no Brasil e estimular notícias falsas em sites obscuros, que serão, posteriormente, reproduzidas nas redes sociais como se fossem verdade.

De maneira geral, diz Ruediger, as plataformas têm melhorado suas regras de transparência para evitar desinformação, como Facebook, Twitter e WhatsApp. A situação é melhor que nas eleições de 2018, mas ainda há muito espaço para aperfeiçoar esses mecanismos. O YouTube, em particular, ganhou proeminência nas eleições deste ano e deveria avançar mais rapidamente na proteção ao cidadão, afirma o professor. O site de vídeos é especialmente atraente porque tem um forte aspecto de entretenimento, o que atrai o público jovem.

Um ponto difícil no uso das redes sociais é entender e disciplinar o papel dos influenciadores digitais na orientação política de seus seguidores. O direito à liberdade de expressão é fundamental em uma democracia, mas não pode ser usado para atentar contra esse mesmo direito, diz Ruediger. “O limite da tolerância é quando se promove a intolerância”, afirma. Isso inclui apologia à tortura e negação de crimes históricos como o Holocausto, além da defesa de ideias antidemocráticas, que vêm ganhando força na internet. O assunto, diz Ruediger, deveria ter sido mais bem discutido na CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das “fake news”, iniciada em setembro de 2019.

A experiência das eleições municipais pode dar uma contribuição para as considerações finais relativas à Lei das “Fake News”, que está em análise no Congresso. O Projeto de Lei 2.630/2020, que dispõe sobre o assunto, foi aprovado pelo Senado em junho. “As propostas têm de evoluir ainda”, diz Ruediger. “É importante atribuir às plataformas digitais algum grau de responsabilidade sobre a disseminação das notícias falsas. As redes não podem se omitir.”

O segundo turno das eleições para prefeitos tende a ter campanhas digitais mais tensas, principalmente se os candidatos escolhidos estiverem em dos polos mais extremos do espectro político ou se confrontarem com candidatos mais ao centro. Também existe o risco de a desinformação ser maior, alerta Ruediger. A previsão é que o segundo turno será um retrato antecipado ainda mais próximo do cenário antevisto para 2022.

Com informações do Valor Econômico

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