Eleições EUA: Um mito desmoralizado

Poucas vezes na história uma eleição foi acompanhada de forma tão minuciosa pelo planeta. Uma consequência benéfica disso é que cada vez mais pessoas se dão conta de que os EUA têm muito pouco a ensinar ao mundo em termos de democracia e eleições livres. Poucas vezes também, o roteiro dos acontecimentos se apresentava tão nítido.

Muitos analistas anteciparam o que estamos vivendo agora: Trump declararia vitória durante a madrugada e tentaria, via Suprema Corte, onde tem confortável maioria de juízes ultraconservadores, impedir a contagem dos mais de 60 milhões de votos pelo correio que, segundo apontam pesquisas, são majoritariamente pró Biden. “Queremos que todas as votações parem”, declarou textualmente, na madrugada desta quarta-feira (4), Donald Trump.

Vejam o que escreveu o jornalista António Santos, em artigo publicado no jornal do Partido Comunista Português, Avante! do dia 29 de outubro, e reproduzido no mesmo dia pelo i21/Portal Vermelho: “Em Michigan, na Pensilvânia, em Iowa e em Wisconsin, os votos enviados por correio, na sua maioria democratas, só poderão ser contados depois dos votos presenciais. É um grave precedente, que abre caminho a que o Supremo ordene interromper a contagem desses votos, como aconteceu nas eleições que, em 2000, os republicanos roubaram a vitória aos democratas (…) Brett Kavanaugh, outro juiz do Supremo cooptado por Trump, fez saber que, caso as eleições venham a ser impugnadas, os Estados não têm autoridade para dirimir diferendos e atribuir a vitória, reservando esse poder ao órgão a que pertence (…) É cada vez mais provável que, na sequência das eleições, Trump grite ‘fraude’ e clame pela intervenção do Supremo”.

Quando um prestidigitador executa uma mágica cujo truque fica visível a todos, ela perde o efeito desejado e de quebra desmoraliza o mágico. No caso de Trump ele não corre este risco por um singelo motivo: assim como neofascistas de sua estirpe, Trump não tem qualquer imagem a proteger fora do círculo de seus admiradores. A imagem de Trump, como, por exemplo, do seu seguidor, Bolsonaro, está queimada em todo o mundo. O que importa única e exclusivamente, no caso, é alcançar a manutenção do poder. Estes “tigres de papel” têm uma leitura muito pragmática da situação: fora do poder fica-se muito fragilizado, corre-se o risco de estar vulnerável a processos pelos diversos crimes cometidos ao longo do mandato (tanto no caso de Trump quanto no de Bolsonaro a atitude diante da Pandemia já seria suficiente para isso) e de ser relegado ao lixo da história de forma mais rápida do que já é o destino inevitável de figuras desta espécie. Assim, todo tipo de golpe e truques sujos é aceitável e será justificado pela ampla munição de fake news e teorias obscurantistas que circulam entre os aficionados. E não subestimem este aspecto pois ele não é folclórico, ele é perigoso. O site UOL informa nesta quarta-feira (4) que entre os deputados republicanos já considerados eleitos, está Marjoire Taylor Greene, representante do grupo QAnon. Este grupo surgiu a partir de uma teoria da extrema direita que denuncia um suposto plano secreto de pedófilos e satanistas contra o presidente dos Estados Unidos Donald Trump e seus apoiadores. A teoria começou com um post na internet em outubro 2017 onde o “patriota” conhecido apenas pela letra “Q”, detalhava o “plano” contra Trump.

O roteiro de Trump está, neste momento, em pleno andamento, mas não tem o êxito assegurado. Afinal, mesmo com uma maioria do Supremo pró-republicanos, os Democratas também fazem parte do establishment e têm poderosos instrumentos de pressão, fora que não é descartável o risco mais do que anunciado de convulsão social ao se desprezar mais de 60 milhões de votos. Mas aconteça o que acontecer, um saldo está claro: ao redor do mundo, o espetáculo grotesco desta disputa está degradando o império, reduzindo sua autoridade moral e consequentemente sua capacidade de liderança, com cada vez mais pessoas se dando conta de que os EUA têm muito pouco a ensinar ao mundo em termos de democracia e eleições livres.

Durante anos a mídia corporativa acompanhou as eleições estadunidenses de forma a propagar o mito da “maior democracia do mundo”. Com o advento das redes sociais e de Trump, que de certa maneira, com seu cinismo, ajudou a tirar a máscara de bons modos da plutocracia, as pessoas começam pela primeira vez a tomar contato com o que é, de fato, a “liberdade americana”. Um parente meu, com mais de 70 anos de idade, ficou surpreso ao ser informado de que nos EUA as eleições são indiretas e algumas vezes o candidato com menos voto popular é o eleito. Fora do reduzido mundo dos que se interessam por geopolítica, isso é uma novidade que deveria fazê-los refletir: “por que, afinal, esconderam este aspecto durante tanto tempo?”.

Outras “novidades” estão aos poucos sendo mais conhecidas:

1 – Há mais de 150 anos apenas dois Partidos (os Democratas e os Republicanos) revezam-se no poder. As regras são feitas para, na prática, impedir o surgimento de qualquer alternativa. Por exemplo, para participar dos debates televisivos, o candidato tem que atingir 15% de intenção de votos nas médias nacionais das pesquisas eleitorais que, em geral, só colocam em suas listas de consultas os candidatos republicanos e democratas…

2 – Por lei não existem limites de contribuição privada para campanhas eleitorais nos EUA. A Suprema Corte também decretou que a transparência não é necessária. Ou seja, nem quem recebe doações de campanha, nem quem faz a doação precisa informar ao distinto público, quanto recebeu ou o quanto doou. Isto transforma a eleição em um jogo de milionários para milionários, onde o eleitor escolhe em qual milionário votará. E claro, o milionário eleito será eternamente grato aos milionários que financiaram a sua campanha, e jamais irá contrariar seus interesses em favor de uma coisa reles como salvaguardar o interesse geral da população. Para se ter uma ideia, a agência Prensa Latina divulgou, neste terça-feira (03) um levantamento da organização estadunidense “Center for Responsive Politics” onde se informa que o custo de campanha dos candidatos alcançou a cifra de 14 bilhões de dólares, correspondentes a nada menos do que 80 bilhões de reais.

Muitos outros aspectos bizarros teríamos para elencar, mas vamos ficar em apenas mais um. Se por acaso a votação entre os 538 delegados (que são de fato os que elegem o novo presidente) terminar empatada (possibilidade pequena mas que já aconteceu uma vez em 1800), a escolha vai para a nova Câmara dos Deputados que tomará posse em dezembro, mas também neste caso, a votação não é nominal, cada estado tem direito a um voto, que é definido pela maioria da bancada. Assim, o Wyoming, com cerca de 500 mil habitantes, tem o mesmo voto da Califórnia, com quase 34 milhões. Acontece que como são 50 estados, pode ser que também dê empate (25 a 25). Neste caso, a votação continua até que o impasse seja superado. E atenção, quem elege o vice-presidente é o senado, com 100 membros e com votação nominal de maioria simples.

Ou seja, uma completa bagunça, que tem como única finalidade perpetuar o poder nas mãos de quem já detém o poder há séculos. Em um canal a cabo da mídia hegemônica brasileira, um comentarista, na tentativa de salvar as aparências, disse que toda esta confusão serviria para que a “democracia” americana “separasse o joio do trigo”, coisa quase impossível pois a quantidade de trigo, neste caso, é ínfima e o joio é o que representa a essência da plutocracia americana, que continuará, vença quem vença, até que surja uma alternativa avançada, fruto da luta das massas oprimidas pelo mito, hoje desmoralizado, da “maior democracia do mundo”.

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