Há 45 anos, assassinato de Vladimir Herzog desmascarava a ditadura

Caso abriu uma crise no governo Ernesto Geisel e teve enorme repercussão

“O Vlado não tinha ideia do que poderia acontecer com ele. Com uma militância amena, ele era de um grupo de jornalistas que jamais imaginava que poderia ser preso”, conta Fernando Pacheco Jordão, melhor amigo do jornalista Vladimir Herzog e seu colega na redação do Estadão e da BBC de Londres. “Não que achássemos que isso justificasse, mas as pessoas presas eram de militância pesada, gente ligada à luta armada. Quem só militava intelectualmente jamais poderia imaginar que seria submetido a tortura e até morreria por causa disso.”

Aconteceu. E justamente em 1975, ano que começa sepultando a censura prévia dos jornais e termina com a tortura e morte de um jornalista sem nenhuma conexão com movimentos armados. Na manhã do sábado, 25 de outubro, há 45 anos, a ditadura militar (1964-1985) fazia mais um prisioneiro.

Procurado na noite anterior, Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, conseguira adiar para o dia seguinte sua apresentação ao temido DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações-Centro de Operações e Defesa Interna). O órgão era subordinado ao comando do II Exército, de São Paulo, que tinha à frente o general Ednardo D’Ávila Mello.

Vlado compareceu às 8 da manhã. No meio da tarde, já estava morto, vítima de tortura que os agentes do DOI tentaram acobertar com a usual farsa do suicídio – era o 38º suicida produzido pelos porões da ditadura. Fotos do cadáver de Herzog dentro de uma cela, enforcado com um cinto preso a uma grade a 1,63 metro do chão, foram mostradas aos demais presos.

Foi enorme a repercussão da morte do jornalista de 38 anos, nascido em 1937, na cidade de Osijek, antiga Iugoslávia, hoje a quarta maior cidade da Croácia. Vlado era casado com Clarice Herzog e pai de dois filhos. Segundo o Laudo de Encontro de Cadáver expedido pela Polícia Técnica de São Paulo, ele havia se enforcado com a cinta que era usada em seu macacão.

Mas o que contraria essa afirmação é o simples fato de que os prisioneiros do DOI-Codi não dispunham de cintos e, tampouco, sapatos com cordões, o que faria ser impossível ele ter se suicidado. Além disso, no laudo foram anexadas fotos que mostram os joelhos de Herzog dobrados com seus pés tocando o chão, o que torna o enforcamento impossível. Seu pescoço, de resto, tinha duas marcas típicas em casos de estrangulamento. Tudo isso, mais uma vez, derrubava a falácia dos militares.

O caso abriu uma crise no governo Ernesto Geisel, penúltimo general-presidente da ditadura. Em 1975, o regime planejava uma abertura que incluía a extinção da tortura e do assassinato de opositores do regime militar – crimes de Estado frequentes desde 1968. Ficou exposta aos olhos do país a cisão no poder militar ditatorial. Manifestações populares, principalmente de estudantes paulistas, começam a eclodir, como não ocorria desde 1968.

Além das falsas provas de suicídio, a tese da infiltração comunista nas instituições era alardeada até no cárcere. “Os agentes nos diziam que, no comando do Partido Comunista, acima dos tais dirigentes que já estavam presos, viriam pessoas insuspeitas, como um cardeal, um governador e um general”, afirma o jornalista Paulo Markun, colega de Herzog na TV Cultura e também detido naquela época. “Era uma referência clara a dom Paulo Evaristo Arns, ao governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, e ao general Golbery.”

Clarice, mulher de Herzog, conta que ele começou a frequentar as reuniões de discussão do PCB dois anos antes, por não ver outra forma de contestar a ditadura. “Ele identificava duas forças organizadas: a Igreja Católica e o Partido Comunista. Como era judeu, não teve outra opção.”

Em 29 de outubro de 1975, no enterro de Herzog, o rabino Henry Sobel contestou a versão oficial para a morte, negando-se a enterrar o jornalista na área do Cemitério Israelita destinada aos suicidas. Ao marcar posição contrária à ditadura, Sobel mobilizou não apenas importantes setores da oposição – mas até o conservador empresariado paulista.

Dois dias depois, na sexta-feira 31 de outubro, mais de 8 mil pessoas participaram de um culto ecumênico na Catedral da Sé, no centro de São Paulo. Barreiras bloqueavam o acesso à praça. A força policial era ostensiva e o clima, tenso. “Antes de começar, chegaram três homens para dizer que eu deveria desistir e que havia 500 agentes na praça para atirar em que quer que dissesse ‘abaixo a ditadura’”, relatou dom Paulo Evaristo Arns, que realizaria o culto ao lado do rabino Sobel e do reverendo James Wright. “Eu disse: Vocês usam a arma, nós usamos o coração.”

Sob a presidência de Audálio Dantas, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo lançou uma nota tão diplomática quanto desafiadora: “Perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda e reclama um fim a essa situação, em que jornalistas profissionais, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança”.

“Todos os cuidados eram necessários para que a gente denunciasse o crime, sem dar pretexto para fecharem o sindicato”, disse Audálio. A entidade já denunciara as prisões que se sucederam ao Discurso de Pá de Cal. A imprensa noticiou a morte de Herzog com destaque, indo muito além das notas oficiais secas que costumavam registrar suicídios e mortes em confronto de vítimas da repressão.

Era a primeira vez que isso acontecia desde que foi instalada a censura prévia nos jornais. Apesar das barreiras policiais, o ato na Sé se tornou memorável. “Foi uma cerimônia comovente, todo mundo que estava na catedral chorou”, disse dom Paulo, que já atuava ostensivamente na defesa de presos políticos desde novembro de 1970.

Nas altas esferas do poder ditatorial, estava claro que se tratava de um “golpe dentro do golpe”, pela insubordinação à autoridade do presidente Geisel. Os setores mais radicais da linha dura seguiam, então, ordens do general Sílvio Frota, aspirante preterido à Presidência da República.

No final, o que poderia ter se transformado em um tumulto sangrento entrou para a História como a primeira grande manifestação popular desde o AI-5. A missa em memória de Herzog foi uma peça importante no quebra-cabeças da abertura brasileira.

Em 1978, num processo aberto pela família Herzog, sentença judicial condenou a União como responsável pela prisão, tortura e morte do jornalista, desfazendo a falsa versão de suicídio. Em junho de 2013, passados 38 anos do covarde assassinato, a Comissão da Verdade questionou a versão de suicídio e reabriu investigações. A família de Vlado recebeu, então, um novo atestado de óbito, no qual o motivo da morte foi trocado – de “asfixia mecânica por enforcamento” para “lesões e maus-tratos”.

Com informações da Aventuras na História e do Acervo O Globo

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