Nagorno-Karabakh: Uma guerra ressuscitada

O partido da guerra que governa os Estados Unidos, apesar de bicéfalo, não poderia estar mais satisfeito com o reacender do conflito de Nagorno-Karabakh. E com ele, obviamente, a OTAN.

Milhares de mercenários islâmicos que têm combatido contra a Síria sob as chancelas da al-Qaida e do Estado Islâmico (ISIS ou Daesh) foram e estão a ser recrutados por empresas de segurança turcas e norte-americanas para acordarem da letargia de 25 anos o conflito de Nagorno-Karabakh entre a Armênia e o Azerbaijão.

Tendo em consideração que o status quo regional e internacional da disputa se tem mantido mais ou menos inalterado no último quarto de século, que interesses estão por detrás do despertar da guerra?

Nagorno-Karabakh, Alto Karabakh ou República de Artsakh, segundo a Armênia, é um enclave de maioria étnica armênia no território do Azerbaijão mantido militarmente sob a jurisdição de Erevan e reclamado por Baku como parte integral do território azeri.

A situação atual resulta de uma guerra travada entre 1988 e 1994 durante a qual a Armênia ficou com o território sob o seu controle militar e administrativo, embora a posição dominante internacionalmente estabeleça que o enclave faz parte do território do Azerbaijão cabendo à população, em última instância, pronunciar-se sobre o estatuto final.

A mediação do conflito tem-se arrastado devido à inação do chamado Grupo de Minsk, criado em 1994 para tentar encontrar uma solução. Chefiado por França, Estados Unidos e Rússia, o grupo tem tido uma existência absolutamente inconsequente. A Rússia, na sua neutralidade tendendo para o lado da Armênia, país que integra instâncias regionais a par de Moscou, vê com bons olhos uma situação congelada; a França revela a habitual tendência para tentar ser importante em organizações internacionais, embora sem conseguir exercer influência determinante fora dos âmbitos da OTAN e da União Europeia; e aos Estados Unidos convém uma situação por resolver, sempre pronta a degenerar em conflito, em regiões fronteiriças da Rússia. E o conflito voltou a ativar-se.

Instabilidade e expansionismo

Comecemos por aqui.

O partido da guerra que governa os Estados Unidos, apesar de bicéfalo, não poderia estar mais satisfeito com o reacender do conflito de Nagorno-Karabakh. E com ele, obviamente, a OTAN, ainda que os comentários a propósito sejam contidos e façam apelos à moderação.

Não há que esperar uma posição oficial norte-americana claramente favorável ao Azerbaijão, uma vez que o lobby armênio nos Estados Unidos é poderoso, principalmente quando se fazem contas eleitorais em dólares e em votos. Mas só por isso.

Porém, a movimentação de mercenários islâmicos em direção ao território azeri, iniciada há semanas por intermédio de empresas de segurança turcas e norte-americanas, é uma espécie de gato escondido com a cauda de fora. Não é segredo que, nas guerras sem fim patrocinadas pelos Estados Unidos, o recurso a mercenários islâmicos, independentemente das bandeiras e das designações que os cobrem, é uma prática norte-americana e dos seus aliados, entre eles a Turquia. Foi assim na Líbia; é assim no Iraque e na Síria.

E a Turquia, que possui o segundo maior exército da OTAN, é a principal potência internacional diretamente envolvida no despertar do conflito de Nagorno-Karabakh, intervindo diretamente, pelo menos no recrutamento de terroristas, e cobrindo a 100% as práticas militaristas do regime de Baku. O ministro turco da Defesa reconheceu, aliás, que forças militares turcas e azeris entraram em manobras conjuntas em julho logo a seguir a um primeiro e sangrento afloramento do conflito registado em meados desse mês.

Nestes dias, o presidente turco, o «sultão» Erdogan, tem sido muito claro ao repetir o slogan segundo o qual Ancara e Baku representam «dois Estados, uma nação». «Apoiamos a resistência dos nossos irmãos azeris contra a cruel invasão Armênia», esclarece o chefe do regime turco. É importante reter que em todas as mais recentes manifestações do expansionismo neo-otomano não se ouviu uma palavra crítica da OTAN e do seu secretário-geral, mesmo quando as ações de Ancara molestam outros membros da aliança, como é o caso da Grécia – mais recentemente a propósito das disputas sobre petróleo e zonas econômicas exclusivas. Para que conste: a Turquia desenvolve as suas ações aventureiristas sem qualquer reparo público da OTAN; e quem cala consente – e aproveita.

O pontapé de saída

No dia 24 de setembro, na reunião virtual da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliev, abordou o problema de Nagorno-Karabakh afirmando que o Grupo de Minsk «considera o status quo inaceitável, mas as declarações não são suficientes, queremos ações». Uma declaração reforçada pouco tempo depois por Erdogan: «O Azerbaijão considera que é tempo de acertar as contas e, para isso, tomar as coisas nas suas mãos.»

Muito antes destas declarações tinham-se tornado notadas as movimentações de mercenários islâmicos estacionados na Síria em direção ao Azerbaijão.

Cerca de 500 terroristas da Brigada Hamza do chamado «Exército Nacional Sírio», comandado pelo turcomano Sayf Balud, um dos ex-chefes do Estado Islâmico ou Daesh, foram transportados em setembro do sul da Turquia para a base aérea de Sumqayt, 30 quilômetros ao norte de Baku.

Circulam igualmente imagens de caravanas de caminhões transportando em território azeri, aos gritos de «Alá é grande», mais de mil mercenários que estavam na Síria e foram recrutados pelos serviços secretos turcos. E mais de 500 terroristas da Brigada Sultan Murab de Alepo, Síria, chegaram ao Azerbaijão sob o comando de Fahim Aissa, outro turcomano. Erdogan parece não confiar muito em chefes mercenários árabes.

O financiamento destas operações é suportado, em grande parte, pelo Qatar e aos recrutados são prometidos entre 1500 a 2000 dólares por mês. O jornalista Finniam Cunningham cita um jihadista de Idleb, o último bastião ocupado na Síria por grupos terroristas filiados na al-Qaida, dizendo o seguinte: «Milhares de nós desejamos ir combater para a Líbia ou para o Azerbaijão. Aqui já não há nada para nós…»

A reativação do conflito de Nagorno-Karabakh é, portanto, mais uma operação em curso recorrendo à matriz do fundamentalismo terrorista islâmico e onde se casam dois interesses muito em evidência na atual situação internacional: o expansionismo da influência turca, ou neo-otomanismo, tolerado pela OTAN; e o cerco à Rússia, tanto através da agressiva permanência de tropas e meios da OTAN nas suas portas europeias, como da desestabilização regional em redor de outras zonas fronteiriças, como ainda através da guerra econômica.

Uma operação que, ressuscitando um conflito praticamente inerte há 25 anos, corresponde, certamente, a objetivos e agendas próprias. O recurso ao mercenarismo sob a capa do fundamentalismo islâmico ajuda a identificar objetivos e a folhear agendas.

O petróleo e a guerra

O Azerbaijão é um grande produtor de petróleo e gás natural. Os atuais preços baixos destes produtos são um drama para um país cuja economia depende quase em absoluto dos combustíveis fósseis. Uma guerra costuma ser um bom pretexto para avivar nacionalismos e para desviar as populações da crise social que se aprofunda. Parece vir a calhar nos dias que correm.

A Turquia tem fortes ligações às fontes de energia do Azerbaijão e, nesse âmbito, transformou-se num importante intermediário de petróleo e gás natural que têm a União Europeia como destino. Além disso, Ancara depende ainda 40% de combustíveis fósseis russos. Uma simbiose mais profunda ainda entre os regimes de Ancara e Baku permitirá à parte turca tirar mais proveito das capacidades energéticas azeris, o que agradará também à União Europeia – sempre muito queixosa da «dependência» do gás russo. Há, sem dúvida, interesses que se reveem nesta situação regional que desponta.

Acresce que todas as manifestações do expansionismo neo-otomano têm importantíssimas vertentes energéticas: na Líbia, através do acesso à zona econômica exclusiva acordada com o governo da Irmandade Muçulmana em Tripoli; na Síria; na ativação da presença turcomana no Curdistão iraquiano; na guerra do gás no Mediterrâneo Oriental contra a Grécia, Israel e Chipre; e agora no Azerbaijão.

Embora de maneira menos evidente, existe ainda um outro foco de rivalidade regional que pode ter motivado uma manifestação tão aberta da ligação política, militar e étnica entre a Turquia e o Azerbaijão. Na sua última campanha eleitoral, o presidente do Irã, Hassan Rohani, defendeu a constituição de uma “federação de povos xiitas” incluindo nela o Azerbaijão. A Turquia poderá usar a situação de Nagorno Karabakh para marcar de maneira mais veemente a sua posição e influência sobre Baku, retirando terreno a uma iniciativa que não é oficialmente iraniana, mas não deixou de criar fricções entre o sunismo e o xiismo.

A ofensiva permanente da OTAN contra a Rússia – e agora também contra a China – é uma característica dos tempos que correm e do seu encaminhamento para um conflito de grandes proporções e consequências imprevisíveis.

O cerco ao território russo e a luta pelo controle das zonas de influência na Eurásia são expressões dessa tendência para o abismo. O recrudescimento do problema de Nagorno-Karabakh serve os sociopatas e os irresponsáveis que percorrem esse caminho. Não é por acaso que, consultando o website Flight Radar 24, foi possível apurar que aviões fretados pelo Azerbaijão foram embarcar armas ao aeroporto de Ovda em Israel. Turquia, OTAN, Israel, mercenários islâmicos: no Azerbaijão os interesses do costume convergem, por muito que sejam disfarçados e silenciados.

Assim como há mercenários islâmicos no lado do Azerbaijão existem indícios de que milicianos curdos e veteranos sírios armênios estão a combater do lado da Armênia.

Esta é, porém, uma escala intermédia dos interesses envolvidos. Não existem dúvidas de que as ações armadas declaradamente iniciadas, desta feita, pelo Azerbaijão podem alcançar muito mais longe.

Na quarta-feira, 7 de outubro, em reunião com o chefe de Estado Maior das Forças Armadas russas, general Valery Gerasimov, Vladimir Putin fez saber que a Rússia manterá os seus compromissos com a Armênia no quadro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), aliança militar que integra ainda a Bielorrússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão. A Armênia faz parte também da União Econômica Euroasiática, que tem a Rússia como maior potência.

Moscou, porém, tem mantido boas relações com o Azerbaijão, incluindo até a venda de armamento. E o presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukaschenko, manifestou, entretanto, o seu apoio ao Azerbaijão – muito provavelmente com o conhecimento prévio de Putin.

Pode deduzir-se que da parte russa há um genuíno desejo de mediação no quadro do direito internacional e das instâncias internacionais, tirando proveito dos vários canais abertos independentemente das contradições que possam obstrui-los.

No entanto, lembrando o exemplo à vista na Síria, parece que ações diplomáticas russas têm os seus limites quando os interesses de Moscou começam, no seu entender, a ser atingidos. O precedente militar foi aberto em território sírio.

Em boa verdade, a questão de Nagorno-Karabakh tem muito pouco a ver com as repercussões da história de um enclave étnico incrustado no território de um outro país ou até com um ajuste de contas de inspiração medieval entre comunidades cristãs e muçulmanas, entre otomanos e cristãos.

Fonte: O Lado Oculto/AbrilAbril