Lixo tóxico nas eleições também é responsabilidade de quem compartilha

Professores da USP se manifestam sobre o risco da desinformação sistemática na eleição municipal. Iniciativa de podcasts da USP visa a “vacinar” a população contra fake news.

Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP

A preocupação com as fake news nas próximas eleições municipais, previstas para o dia 15 de novembro, predominou na análise do professor Pablo Ortelladoque leciona no curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP). Em entrevista, o professor destacou que o próximo pleito será bem particular, já que a pandemia empurra as campanhas eleitorais para o digital. O investimento do dinheiro de campanha irá aumentar nesses segmentos on-line, se comparado às eleições presidenciais de 2018, destacou Ortellado.

Ele avalia que o ambiente de engajamento nas redes continua ativo e que pouco será feito para controlar a disseminação de desinformação e conteúdos maliciosos. Assim, ele sugere que o eleitor deve contribuir para melhorar o ambiente democrático e reduzir os efeitos tóxicos da polarização, compartilhando conteúdos com responsabilidade. Para ele, o Whatsapp será o principal instrumento de desagregação eleitoral.

Mudanças desde 2014

Pablo Ortellado

Por ser a primeira eleição pós-2018, Ortellado espera algo diferente no funcionamento das campanhas. “A eleição de 2018 foi muito singular. Rompeu o paradigma de todas as eleições anteriores. Havia um consenso na ciência política de que uma candidatura viável devia acumular pelo menos três condições para ela ser competitiva: ter verba de campanha, tempo de propaganda nas rádios e TV e alianças nos Estados, porque isso conferia palanque”, disse o professor na entrevista. Entretanto, a candidatura do atual presidente Jair Bolsonaro não continha nenhuma dessas três características.

Isso também deve empurrar a campanha para a militância digital. Uma prova disso foi a campanha de Geraldo Alckmin que foi bastante prejudicada por Bolsonaro, mesmo tendo recursos fartos, alianças com muito palanque e tempo de TV. “Ele teve uma performance muito ruim enquanto Bolsonaro foi eleito quase no primeiro turno, provando que militância digital derrota dinheiro”.

Foto: Moisés Dorado / USP Imagens

Campanha municipal e ideologização

A campanha digital exige um engajamento, uma paixão política diferente da presencial, pois a mensagem precisa ser retransmitida, o que acaba configurando, geralmente, campanhas mais ideologizadas, segundo o professor. No entanto, ele ressalta que a eleição municipal não é tão ideologizada, pois os temas são mais relacionados a zeladoria urbana, por exemplo.

“A campanha digital pede um engajamento apaixonado e dividido do eleitor. Não basta dar sua opinião; ela precisa ser compartilhada e disseminada por outros. Por isso, embora a campanha seja empurrada para as redes sociais, a campanha municipal favorece menos a ideologização e o apelo do engajamento dos temas. Não sei como isso vai se equilibrar”, ponderou.

Por outro lado, o clima de polarização criado na eleição passada mantém as militâncias articuladas fora do período eleitoral. Antes havia um boom de militância no período eleitoral e que se desarticulava fora do ciclo, mas agora é permanente. Por isso, as redes sociais, com todas mudanças ocorridas de lá pra cá, continuam, na opinião do especialista, com a mesma dinâmica de engajamento. “A disputa continua nas redes sobre a interpretação de cada novo fato na política. Essa circunstância está dada”, disse.

Ortellado diz que as redes articuladas, hoje, são nacionalizadas. Não há redes municipais claramente montadas e potentes. “São redes ligadas ao bolsonarismo, à esquerda, ao feminismo, ao movimento anti-corrupção, então não deverão ser utilizadas em toda sua potência nos municípios”.

Facebook, Twitter, Youtube e WhatsApp

Mas ele não acredita que a população esteja vacinada contra o “jogo sujo nas eleições”, mas anestesiada pelo que aconteceu, particularmente, em 2014, em que práticas agressivas se expressaram nas redes, na TV e nas ruas, enquanto em 2018, ela foi definida no digital.

Para Ortellado, plataformas como o Facebook, Twitter, Youtube e WhatsApp terão papéis determinantes no combate às fake news. Já em 2018, ele observa uma reação mais rigorosa do Facebook ao desarticular páginas e conteúdos, devido à pressão da justiça. Hoje, ele perde relevância no engajamento, devido à novidade do Whatsapp.

Fotomontagem: Moisés Dorado sobre  foto de Marcos Santos / USP Imagens

O WhatsApp segue como principal novidade da eleição de 2018, que foi central na divulgação de informações dos candidatos, principalmente na campanha de Jair Bolsonaro que pegou de surpresa as demais candidaturas ao dar centralidade à formação de grupos naquele aplicativo. “Como foi uma campanha bem-sucedida, ela abriu o terreno. Hoje, as redes de distribuição de conteúdo no WhatsApp estão espalhadas pelo País. O WhatsApp é a plataforma mais utilizada entre os brasileiros”, acrescenta o professor.

Ele lembra ainda que, por não ter rastreabilidade, o chamado Projeto de Lei das Fake News encontra dificuldades para enquadrar o WhatsApp em suas regras, já que nessa plataforma não é possível determinar a origem de uma informação. Só se sabe o que está circulando nos grupos, aos milhões, quando isso se expressa em pesquisas de opinião. “Com isso, ela não só acoberta, mas estimula o ilícito e que atores maliciosos façam a campanha suja no Whastapp”, analisou.

Outro problema do Whatsapp é que o candidato atacado não fica sabendo a dimensão do ataque que está recebendo, nem de onde vem. Todo o desenvolvimento do raciocínio do ataque também fica fora do controle da vítima. Começa com uma lógica simples e vai crescendo num “telefone sem fio”. Quando a vítima se dá conta, não sabe sequer como começou e chegou a esse ponto.

“Você não tem ciência do ataque, pois é uma rede privada, e não tem direito de resposta. Então, se a pessoa responde ao ataque, a resposta não é redistribuída na cadeia, como era possível fazer no Facebook, que é uma plataforma pública”. Isso avançou durante a pandemia, em que a campanha negacionista foi toda construída no Whatsapp, mantendo as redes de bolsonaristas articuladas.

Para ele, o problema crônico do Twitter são as contas falsas e os robôs, que o aplicativo tem dificuldade de enfrentar. “Mas tem uma base de usuários relativamente pequena, o que equilibra o problema”.

Não se sabe como o Youtube vai se comportar nesta eleição, com sua enorme base de usuários. “É uma rede que está muito politizada com cerca de 400 canais grandes de política, que o Youtube remunera promovendo um estímulo financeiro para atores maliciosos desenvolverem suas redes”, observou. Ele também considera delicado legislar sobre o formato do “youtuber” opinativo, que acaba gerando muita opinião política.

De acordo com o professor Ortallado, o TSE vai fazer o que pode, mas o problema é grande demais para eles. O problema não foi resolvido em lugar nenhum, dificilmente vai ser resolvido aqui. “Esse problema da desinformação e do jogo sujo na política digital não é só dos atores que estão semeando conteúdo malicioso nas redes. Ela é nossa, pois se a gente não apertar o botão de compartilhar, a mensagem não trafega. Existe uma corresponsabilidade entre os produtores desses conteúdos e nós usuários que somos responsáveis de fazer esses conteúdos chegarem a mais pessoas”.

Ele sugeriu que se compartilhe com responsabilidade. “Se o ambiente está ruim, tóxico, sujo, pesado, desinformativo, a responsabilidade disso também é nossa”, disse.

Iniciativas da USP

Fotomontagem: Moisés Dorado sobre foto de Ketut Subiyanto / Pexels

Com as proximidades das eleições municipais, cresce o risco de proliferação das fake news. Contra essa ameaça, docentes da USP se colocam à disposição para orientar a sociedade sobre como identificar, evitar e combater essa prática. Na Escola de Comunicações e Artes (ECA), professores e alunos se mobilizaram para produzir uma série de podcasts que trata do tema.

A série de podcasts produzida pela ECA – intitulada ECA-USP Contra as Fake News – surgiu graças à iniciativa do professor Luciano Victor Barros Maluly, do Departamento de Jornalismo e Editoração e do estudante de doutorado da ECA Felipe Parra.

Maluly conta que se inspirou na campanha de combate às notícias falsas veiculada atualmente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o biólogo Átila Iamarino. O incentivo definitivo, explica, veio quando as pessoas começaram a lhe perguntar o que a ECA faz para combater as fake news.

Reunindo contribuições de professores, ex-estudantes e colaboradores de outras instituições acadêmicas, a série procura utilizar o conhecimento em defesa da democracia e da cidadania, de acordo com Maluly. Segundo ele, os podcasts são gravados pelos próprios participantes a partir de um pequeno roteiro.

Em cada episódio, um convidado tece suas considerações sobre o combate às fake news, em áudios que variam de 50 segundos a pouco mais de oito minutos. Eles se apresentam, dão seu recado e finalizam com as palavras do projeto: “Esta é uma luta da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo contra a proliferação das fake news”. 

Luciano Maluly

“Nós estamos fazendo esse trabalho para auxiliar o público a lidar com esse problema da nossa sociedade”, explica Maluly, que vê a iniciativa como uma ferramenta de combate. “Como diz o professor Manuel Chaparro (docente aposentado da ECA), se é fake, não é news.

“É um alerta para a Universidade de São Paulo e demais universidades brasileiras”, afirma o professor. “Tem que ter investimento nessa pesquisa, com uma parceria entre pesquisadores e jornalistas, para podermos combater essa pandemia das fake news.”

De acordo com Maluly, a ideia é angariar o maior número possível de depoimentos, reunindo não só professores e ex-estudantes da ECA, mas profissionais e pesquisadores de outras áreas além da comunicação, e também de outras instituições acadêmicas. Quem quiser contribuir pode entrar em contato com o professor Maluly pelo e-mail [email protected].

Eugênio Bucci

No episódio inaugural da série, o professor da ECA Eugênio Bucci recomenda que a origem de uma informação seja conferida e os fatos nela narrados sejam verificados para evitar compartilhar fake news. “Se os grandes órgãos de imprensa do País e do exterior não dão uma notícia que alguém diz para você que é a última palavra sobre o assunto mais importante do globo terrestre, cuidado, porque não deve ser bem assim. Não custa esperar um pouco”, aconselha o docente.

Rosana Soares

A pesquisa também é apontada pela professora da ECA Rosana de Lima Soares – em outro episódio da série – como uma das estratégias mais eficazes para combater as notícias falsas. “Nós podemos entrar em lugares diferentes para comprovar a veracidade das informações, mas não apenas isso, para pensar também sobre a qualidade da argumentação, as fontes que são entrevistadas, os jornalistas ou os autores que veiculam essas informações. A comparação e a pesquisa são as melhores formas de lidar com as fake news.”

Dennis de Oliveira

professor da ECA Dennis de Oliveira faz coro à fala de Rosana, salientando que não basta apenas ver a origem da notícia, pois existem casos de fake news mesmo em órgãos tradicionais da imprensa. “É fundamental analisar a estrutura da informação que se recebe: quais foram as fontes entrevistadas, se elas gozam de credibilidade quanto ao assunto abordado, quais são os lugares de fala tanto dessas fontes como também do próprio órgão informativo que disseminou a informação”, aconselha.

“É trabalhoso, mas necessário para garantir a democracia e banir de vez o uso e o abuso das mentiras no debate público”, arremata Dennis de Oliveira, resumindo o espírito do podcast.

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Elizabeth Saad

“Combater a desinformação também é um exercício de cidadania”, comenta em outro episódio a professora da ECA Elizabeth Saad Corrêa. Entre suas reflexões registradas no podcast, a docente destaca o papel dos professores de comunicação nessa luta. “A nossa função é exercer e disseminar a prática de como identificar desinformações ou fake news”, afirma.

Rafael Venancio

“Entender que o mundo possui seus contraditórios e investigar é sempre uma boa forma de entender a veracidade e a desconfiança que está por trás de uma informação”, aponta o pós-doutorando na ECA Rafael Duarte de Oliveira Venancio.

A série ECA-USP Contra as Fake News está disponível na página eletrônica do projeto Universidade 93,7 MHz, ligado ao Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, e também no Facebook e no Youtube. O professor antecipa também que em breve a produção estará na ECA TV e há planos de veicular os episódios na Rádio USP.

Com informações do Jornal da USP e edição de entrevista à Rádio USP

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