Paradiplomacia e desenvolvimento nacional

A paradiplomacia é, assim, um caminho necessário para estados e municípios em uma economia-mundo cada vez mais interligada.

Nas últimas décadas, com especial intensidade desde a virada do século, acentuou-se o fenômeno da chamada paradiplomacia. O termo não é consensual entre os estudiosos do assunto, que preferem falar em “diplomacia federativa”, “cooperação internacional descentralizada”, dentre outros. De todo modo, esse foi o conceito cunhado por Panayotis Soldatos para definir o fenômeno da intensificação dos contatos e relações entre poderes locais ao redor do globo, atuando em esferas que, no clássico modelo westfaliano, seriam exclusivas de Estados Nacionais. Portanto, a “paradiplomacia” indica a prática diplomática de entes subnacionais, ou seja, os governos locais que integram um Estado soberano. No caso do Brasil, são os estados e municípios.

Trata-se de um terreno aberto tanto na teoria das relações internacionais como no estudo do próprio conceito de soberania. Há, na verdade, até uma falsa questão: quando um ente subnacional amplia sua presença no cenário externo está, ainda que não de forma total, exercendo uma competência que seria exclusiva do governo nacional? A resposta é não. Pelo contrário, a paradiplomacia incrementa e solidifica a soberania nacional.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela não é produto exclusivamente de decisões políticas de autoridades locais, mas sim da própria alteração na estrutura das relações internacionais, que passam a incorporar cada vez mais novos atores. As transformações econômicas e tecnológicas possibilitaram um mundo muito mais interligado e interdependente. Cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, passaram a ver como possíveis e necessários os contatos com governos externos congêneres, assim como os próprios governos estaduais. A relação direta é feita de forma mais dinâmica e, portanto, é mais apta na busca de soluções para os problemas locais. Sendo assim, essa é uma realidade nova que o conceito de soberania e, consequentemente, as relações entre os entes de um Estado, devem enfrentar.

No caso brasileiro, os antecedentes da paradiplomacia são antigos, podendo ser possível vislumbrar uma “paradiplomacia financeira” já no início da República. Contudo, o desenvolvimento dessa prática como política em caminho de se consolidar se deu apenas neste século, incrementando as inciativas mais concretas que vem da década de 1980, a partir do pioneirismo do governo Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, primeiro a criar uma assessoria especialmente voltada às relações internacionais. Hoje, praticamente todos os estados do país tem uma secretaria com essa atribuição. São Paulo, estado mais rico da federação, possui inclusive escritório de representação aberto em Xangai, na China, além de ter assinado dezenas de acordos e protocolos, por exemplo.

Em nosso caso específico, há dois elementos essenciais que explicam a difusão dessa prática, além das considerações gerais que afetam todo o planeta (interdependência econômica, tecnologia das comunicações, incremento no transporte, etc). O primeiro deles é a descentralização política do Estado como efeito do fim da última ditadura, em 1985. Os entes subnacionais foram empoderados, em contraste com o autoritarismo do período anterior. Além disso, em uma instituição tipicamente brasileira, os municípios foram elevados à condição de entes da federação, em 1988, ao lado dos estados e da União. No novo desenho da República, redemocratizada, os entes subnacionais tinham competência para buscar a satisfação de seus interesses locais.

O segundo elemento é a integração regional. Após 1985, os governos de Brasil e Argentina passaram da lógica da rivalidade geopolítica para a da colaboração. A ambos interessava uma plataforma que possibilitasse sua reinserção internacional com um viés apartado da experiência e da imagem autoritárias. Nesse sentido, foi articulada a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul), em 1991, também contando com Paraguai e Uruguai. Mesmo com todas as questões mal resolvidas e os ataques que sofre, o Mercosul ainda é a mais bem sucedida experiência de integração regional do subcontinente. Entre as mudanças que ele possibilitou, está o maior entrelaçamento entre os governos locais de seus países membros.

Políticas de cooperação entre estados brasileiros e províncias argentinas, por exemplo, passaram a existir. Além disso, e talvez no que seja o mais importante espaço da paradiplomacia na América do Sul, foi criada a Rede Mercocidades, na qual os governos municipais dos países do Mercosul passaram a trocar experiências nas mais diversas áreas, formando uma verdadeira escola de políticas públicas. Dessa prática no âmbito da integração, vem parte substancial da experiência e da teoria sobre paradiplomacia praticada pelos governos subnacionais brasileiros.

Portanto, quando se fala em paradiplomacia, fala-se em uma realidade cotidiana. Não obstante, voltando à questão em torno do conceito de soberania, não existe um marco jurídico que a regule. A Constituição Federal de 1988 define que as relações exteriores são competência da União (art. 21, I) e a divide entre os três poderes (arts. 84, VII e VIII; 49, I; e 105). Não existe, então, a previsão expressa de relações internacionais estabelecidas por entes federados. Isso pode ser interpretado tanto de uma forma restritiva, na qual apenas a União poderia exercer essa atividade, como numa forma extensiva, entendendo que, se a Constituição atribui poderes a estados e municípios, haveria também uma autorização tácita para que eles busquem, na esfera internacional, a defesa de seus interesses.

Evidentemente, a competência exclusiva da União ficaria garantida para a celebração de tratados, decretação de guerra e mesmo a aprovação de empréstimo internacional (que hoje, deve ser votado pelo Senado Federal). Mas não há qualquer impedimento a acordos de cooperação, busca de investimentos, intercâmbio de políticas públicas ou simples trocas de experiências que marcam o universo de possibilidades comportadas pela paradiplomacia. Não há, aqui, nenhuma usurpação de competência que fira a integridade do Estado brasileiro, pelo contrário, o que há é a abertura para a consolidação e desenvolvimento desse Estado.

Afinal a Constituição Federal também define os princípios que, de forma discricionária, devem dirigir a política externa do país. Esse é, a rigor, o marco jurídico que obrigatoriamente orienta as relações internacionais do Brasil, quer sejam as conduzidas pela União, quer sejam as dos entes subnacionais. Tais princípios estão dispostos no art. 4º: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; concessão de asilo político; e a busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Quando o Itamaraty se desvia de qualquer desses princípios, está atuando contra a Constituição. Da mesma forma, esses princípios devem ser a bússola da paradiplomacia, a segurança que mantém coesa as relações internacionais do Brasil, em quaisquer das suas manifestações.

Superada essa questão, são evidentes as vantagens. Por isso mesmo, a prática se difundiu pelos estados e também começa a conquistar municípios de médio porte, não se restringindo às grandes metrópoles. Os acordos estabelecidos são oportunidades para cidades e estados projetarem seus mercados internacionalmente, trazerem investimentos, gerarem empregos, enfim, atenderem às suas necessidades. Há hoje acordos desse tipo abordando temas como comércio, indústria, construção de infraestrutura, turismo, administração pública (com intercâmbio de práticas governamentais), educação, esporte, cultura, segurança pública, dentre muitos outros temas possíveis.

Tais acordos não tem a forma de “tratados”, atribuição específica e exclusiva da União, mas sim de “acordos de irmanamento”, comportando em si diversas iniciativas como as listadas acima. Uma cidade como Contagem, por exemplo, em Minas Gerais, tornou-se, na gestão do prefeito Carlin Moura, “cidade irmã” de Montevidéu, capital do Uruguai, e de Jiaxing, cidade da grande Xangai. Como resultado, foram intercambiadas políticas públicas aplicadas com sucesso na cidade, além de captados investimentos diretos no importante polo industrial local. Destacamos Contagem para exemplificar como é possível o caminho da paradiplomacia em uma cidade de médio porte, mas são muitas as experiências positivas e já estudadas como casos de sucesso como Guarulhos, Osasco, Jaboatão dos Guararapes, dentre outras, além de capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, etc.

Consórcio Nordeste – Divulgação

No que tange aos estados, existe ainda a iniciativa recente do Consórcio Nordeste, constituído pelos governos daquela região para somar esforços e atuar conjuntamente na governança e na atração de investimentos. Com sede inaugurada em Brasília neste ano, o Consórcio já organizou uma viagem oficial dos governadores nordestinos à Europa, visitando França, Itália e Alemanha. Na missão, são exploradas tanto a busca por investimentos, especialmente em infraestrutura – com destaque para energia renovável -, como apresentadas outras possibilidades: incrementar o intercâmbio entre as instituições de ensino e pesquisa, ampliar as exportações, fomentar o turismo, etc. Uma nova viagem à Europa já está sendo planejada para visitar países que não foram contemplados na primeira missão. Além disso, é plano do Consórcio também organizar uma visita oficial à China, com o mesmo objetivo.

A paradiplomacia é, assim, um caminho necessário para estados e municípios em uma economia-mundo cada vez mais interligada. Sem ela, os entes subnacionais perdem oportunidades efetivas de se desenvolverem. Hoje, com Bolsonaro conduzindo uma política externa nociva para a imagem do Brasil, ela se faz ainda mais necessária na afirmação dos princípios constitucionais que regem as relações exteriores do país. Afinal, o prejuízo causado pelo Itamaraty de Bolsonaro afeta também os governos de estados e municípios. Por isso, a difusão cada vez maior da paradiplomacia pode ser o caminho para começar a restabelecer a boa imagem externa do Brasil. 

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