E se faltar arroz? Desafios e sintomas históricos da alta dos preços

O aumento súbito do preço do arroz deveria promover um debate mais amplo sobre o papel da política pública na produção e consumo de alimentos de qualidade, variados, a preços acessíveis e estáveis, fundamental para se alcançar a soberania alimentar.

Exportações de arroz cresceram 205% em quatro meses - Foto: Blog do Planalto

Poucos alimentos são tão representativos da cozinha popular brasileira quanto o arroz com feijão. Base indiscutível de boa parte dos pratos feitos Brasil afora, a dupla amalgama a composição que inclui ainda as misturas e as sustâncias no linguajar popular. Tanto é que fugiu do prato e alcançou sentidos metafóricos. Virou sinônimo daquilo que é básico, fundamental.

Não à toa, a elevação do preço do arroz no Brasil foi destaque nessa última semana no debate público, em inúmeros noticiários e nas redes sociais. O aumento de 33% no Ceasa fez o pacote de 5kg custar R$ 40 em muitos lugares, o que acendeu um alerta e instaurou um debate sobre o preço da comida no Brasil.

Embora súbito, o aumento não surpreende quem acompanha dados sobre a alimentação no país. Há uma relativamente simples explicação econômica: do ponto de vista do lucro, a alta do dólar torna mais vantajoso exportar o produto a comercializá-lo no mercado interno. De fato, se o consumidor brasileiro está temendo a falta de arroz no prato, os produtores têm comemorado recordes de exportação.

Segundo dados oficiais do Comex Stat, houve aumento de 205% nas exportações do cereal nos últimos 4 meses (maio-agosto), comparados ao mesmo período de 2019. Quando analisamos essas quantidades em quilos, os dados ficam ainda mais impressionantes. Enquanto de maio a agosto de 2019 saíram do país 271 mil toneladas, em 2020 batemos 872 mil toneladas.

Embora a explicação econômica pareça simples, complexos são os impactos que o fenômeno gera na vida da população, que já andava bastante abalada num cenário de crise. Ainda que seja comum ouvirmos que o arroz é um alimento que não tem classe, dado que é consumido cotidianamente por brasileiros de diferentes camadas sociais, sua importância não é a mesma quando observamos diferentes segmentos.

Essas diferenças são observadas através dos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2018, que revela, por exemplo, que o arroz está entre os três alimentos de maior importância nas despesas das famílias que possuem até dois salários-mínimos (16,5 milhões de famílias), correspondendo sozinho a quase 3,95% de todo o orçamento com alimentos. Curioso também observar que o cereal só perde para carne de frango (6,66%) e pão francês (4,03%), produtos também sujeitos a variação de preços frente à alta da moeda norte-americana.

Na outra ponta, no segmento das famílias que ganham acima de 25 salários-mínimos (1,8 milhão de famílias) a despesa com arroz sequer aparece entre os 20 itens mais consumidos, representando 0,36% das despesas. Apresentamos essas comparações para pensarmos o quanto o mesmo fenômeno econômico acomete de forma diferente a população de acordo com determinantes de classe. Quando um item tão importante sofre um aumento repentino de preços traz consigo um impacto diferente e desigual, especialmente num contexto econômico e político de ampliação da desigualdade de rendimentos e aumento do desemprego.

É improvável que ao escrever “comeu feijão com arroz como se fosse príncipe”, Chico Buarque previsse os memes que inundariam as redes sociais nesse jeito brasileiro de manifestar indignação rindo da própria mazela. E se as fotomontagens e trocadilhos da semana tratavam arroz como pedra preciosa, ele não é o único ingrediente com preços em ascensão.

O aumento do custo de alimentação não acompanha a evolução do salário mínimo e renda média dos brasileiros. É noticiado que o índice geral de preços medido pelo INPC-IBGE acumulado em 2020 (até agosto) é baixo (1,16%). Entretanto, quando olhamos para o grupo Alimentação e Bebidas a variação é consideravelmente maior, marcada em 5,43%. Além do arroz, a farinha de trigo (12,75%), a farinha de mandioca (10,33%), a batata-inglesa (9,78%), o leite longa vida (22,23%), óleo de soja (18,48%) e o açúcar cristal (10,76%) apresentaram aumento significativo.

Companheiro de prato, seja no arroz com feijão, no baião de dois, no rubacão e nos populares mexidões, o feijão também apresentou um aumento impressionante, entre 12,91% e 41,02%, dependendo do tipo.

Se considerarmos o valor acumulado desde janeiro de 2019, os alimentos e bebidas já somam elevação de 12,5% (INPC). A cesta básica na cidade de São Paulo, segundo dados do Dieese, subiu 15,46%. No mesmo período, o valor do salário mínimo teve aumento nominal de apenas 4,7%. E a fragilização da segurança alimentar da população tende a piorar, dado que essa discrepância deve se elevar até o final do ano.

Se a explicação econômica é bastante clara e repleta de dados, as explicações políticas (ou a ausência delas) são mais complexas e nebulosas. Faz pensar, por exemplo, na ineficiência do Estado em regular contextos econômicos que ameaçam a segurança e soberania alimentar da população, num país que está voltando ao mapa da fome, segundo a ONU.

Junto do aumento do preço, o brasileiro parece também ter descoberto que o Movimento Sem Terra (MST) é o maior produtor de arroz orgânico do país. Em discordância daqueles que produzem comida no modelo de commodity, o MST não aumentou seus preços, mesmo sendo plenos conhecedores da “lei da oferta e da demanda”. Isso porque o trabalho das famílias assentadas, que estimam colher em 2020 mais de 300 mil sacas de arroz, tem um sentido diferente. Responsáveis também por uma ostensiva e constante doação de alimentos durante a pandemia do Covid-19 no Brasil, a produção do movimento leva em conta as implicações nas relações sociais, que não podem ser reféns do protagonismo da lógica do mercado.

Outro ponto que passa despercebido ao debate é o quanto estamos reféns de uma única variedade do cereal que já foi imensamente mais diverso nos nossos pratos, seja o arroz pilado produzido no Vale do Ribeira pelas comunidades de origem quilombolas ou os diversos arrozes do Vale do Paraíba.

É nesse sentido que esse aumento súbito do preço do arroz deveria servir de pontapé para um debate mais amplo e generalizado sobre o papel da política pública na produção e consumo de alimentos de qualidade, variados, a preços acessíveis e estáveis, fundamental para conquistarmos uma soberania alimentar.

O que fica óbvio é que sem investimento em agricultura familiar e em reforma agrária não é possível pensar em soberania, dada a desigualdade que se expressa de modo estrutural no secular monopólio das terras brasileiras.

Ainda que pareça surreal, estamos diante de um contexto onde a variação especulativa do câmbio pode comandar o que tantas pessoas comem ou deixam de comer. Contexto esse que só pode ser alterado frente a uma transformação radical, sistemática e calcada na implementação de políticas públicas que resultem uma mudança na nossa lógica econômica.

Por ora, a elogiada mão invisível do mercado se faz bastante visível, ameaçando afastar do brasileiro o básico arroz com feijão de todo dia, cultivado, cabe destacar, à custa de degradação dos nossos biomas, que em paralelo, seguem sendo incendiados.

Sem querer engrossar o coro dos contentes, para nós brasileiros, a canção de Ben Jor nunca fez tanto sentido: eu quero paz e arroz!

Fonte: Brasil Debate

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