Graziano já alertava para risco de insegurança alimentar na pandemia

Um dos criadores do Fome Zero apontou a falta de articulação do governo federal para combater a fome em meio ao coronavírus e à crise econômica

Graziano durante evento da FAO em Roma, em 2011. (Divulgação/FAO)

Em plena pandemia, a desmobilização do combate à fome nos últimos cinco anos pode cobrar um preço alto. Era o que alertava o ex-diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva, antecipando a constatação de que o país voltaria ao Mapa da Fome mundial já em 2020.

As medidas para evitar esta tragédia passam necessariamente pelo governo federal, disse ele em entrevista ao site De Olho nos Ruralistas, quando a pandemia ainda se restringia aos grandes centros urbanos. Suas previsões foram se confirmando conforme se deu o avanço da pandemia e do desgoverno Bolsonaro. A notícia do dia é a escalada inflacionária dos alimentos básicos.

A gestão de Jair Bolsonaro desmontou estruturas de abastecimento e fomento de cooperativas de pequenos agricultores. Uma das principais ferramentas à disposição do governo é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ponte entre a agricultura camponesa e aqueles que passam fome. Os recursos do programa estão em queda livre há anos. Se em 2012 o governo investiu R$ 1,2 bilhão no PAA, em 2019 o valor caiu para menos de um sexto, R$ 188 milhões, apontou estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Para a equipe do Ipea, a queda do PAA ocorreu pela “diminuição gradativa dos recursos investidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário”. Rebaixado ao status de secretaria, a pasta “teve seu orçamento bastante reduzido, restringindo-se a pequenas execuções de formação de estoque”, diz a equipe do instituto.

O esvaziamento dos estoques públicos é outro problema grave, segundo o ex-diretor-geral da FAO. Os alimentos comprados via PAA são também destinados a estoques públicos, estratégicos em momentos excepcionais, como a pandemia do novo coronavírus. Bem supridos, viram ferramentas para que governos estaduais e municipais alimentem populações carentes e abasteçam regiões vulneráveis.

A Companhia Nacional de Abastecimento também entrou na mira das privatizações desde janeiro de 2019. Com a benção da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, o então presidente da Conab, Newton Araújo Silva Júnior, anunciou a desativação e venda de 27 armazéns, quase um terço do total em todo o país — incluindo regiões centrais, estratégicas para o abastecimento em diversos estados. “O governo tem de assegurar que as cidades formem um mínimo de estoques de emergência, evitando uma especulação desenfreada nos produtos da cesta básica”, diz Graziano.

Graziano já criticava a ausência de medidas sanitárias, que se restringiam ao isolamento social, sem se preocupar com a segurança alimentar. O governo federal resistiu o quanto pode à oferta de um auxílio emergencial, que, por força da oposição no Congresso Nacional, acabou sendo aprovado. O acesso ao recurso, no entanto, veio tarde e com dificuldades burocráticas.

Uma das preocupações dele foi a falta de mecanismos eficientes para se promover um maior uso de feiras livres, feiras do agricultor, entre outros. São eles que asseguram um fluxo contínuo de produtos frescos — frutas, verduras e legumes — para as cidades. As imagens de agricultores desperdiçando produção por falta de demanda em restaurantes e feiras, por exemplo, foi uma das catástrofes da pandemia, que só não continuou porque muitos desses produtores reduziram sua produção para evitar o desperdício. “Sem apoio para o escoamento, podemos ter uma total desarticulação da pequena produção familiar, é muito preocupante. São eles que provêm grande parte dos alimentos que consumimos nas cidades”, disse Graziano.

Antes da pandemia, quando ainda estava na FAO, Graziano fez um cálculo que apontava que, se não houvesse reversão da tendência, o Brasil voltaria ao Mapa da Fome. O aumento do desemprego em função da crise e a redução dos programas sociais — vista no aumento da fila do Bolsa Família — poderiam trazer a fome de volta ao país. Os cálculos sugeriam que provavelmente o Brasil voltaria ao Mapa da Fome ao fim de 2021. Mas com a recessão mundial, e a descontinuidade de programas sociais e do auxilio emergencial, isso pode se antecipar.

O desmonte da estrutura de combate à fome, com a extinção de conselhos como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), falta de diretrizes no combate à insegurança alimentar em Planos Plurianuais do governo e corte de recursos de pastas estratégicas, para Graziano, o maior impacto é a falta de coordenação na política de segurança alimentar, que exige ampla interlocução entre diferentes ministérios.

Um exemplo é a desarticulação entre o Ministério da Agricultura e o da Saúde: cada um conduz suas políticas específicas, mas falta um entrosamento de governo para articular ambos. Ele explica que isso poderia ser assegurado pelo Consea, por exemplo, onde poderiam ser ouvidos representantes da sociedade civil, empresários, representantes de ministérios setoriais. “Cada um tem olhado apenas para as próprias políticas, e a falta de coordenação nas ações é fundamental”.

O impacto disso se revela também na sucessiva desidratação de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que a cada ano chega mais perto do chão em termos de recursos. “E não apenas o PAA, que é vital, está sendo desidratado. O fato de a Conab, organização-mãe que articula o programa, estar na lista de privatizações do governo já indica a falta de prioridade ao tema”.

Especulação nos preços

Para o agrônomo, há uma lista de ações fundamentais que o governo deveria ter tomada para garantir a segurança alimentar dos mais vulneráveis. A mais importante, segundo ele, é combater e proibir a especulação no preço dos produtos alimentícios. “Precisamos de um controle da especulação por meio de organismos de defesa do consumidor, de fiscalização de preços. Já está ocorrendo algo do gênero com o feijão. Estamos em plena safra e o preço disparou, não há nenhuma razão para tal. O governo tomou uma medida importante nessa linha em relação aos produtos farmacêuticos. Deveria agir da mesma forma em relação aos produtos da cesta básica. Não se trata de congelamento de preços, mas de acompanhar, fiscalizar, inspecionar”, defendeu. 

Há ainda duas medidas fundamentais em nível federal. Ele citou a continuidade da oferta da merenda escolar, já que muitos vão à escola para comer, é lá que têm a única refeição do dia  especialmente famílias mais pobres. “Manter a merenda por meio de compras da agricultura familiar é uma medida imprescindível”. Essa medida acabou sendo garantida, mais uma vez pela aprovação no Congresso da distribuição de alimentos da merenda escolar a pais e responsáveis durante a pandemia.

Ele também mencionou a importância do PAA em suas diversas modalidades. Para Graziano, a opção de compra e doação simultânea, que faz o produto ficar no local onde foi comprado garante que haja alimentos disponíveis nas cidades para combater a fome na pandemia. “O governo tem de assegurar que as cidades formem um mínimo de estoques de emergência, evitando uma especulação desenfreada nos produtos da cesta básica”, afirmou.

Ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, o brasileiro comandou a FAO entre 2012 e 2019. José Graziano da Silva é um dos criadores do Fome Zero, iniciativa reconhecida mundialmente.

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