Nada de lamento: anistia, conquista do povo brasileiro

Vamos celebrar o dia 28 de agosto como uma vitória. Uma grande vitória dos perseguidos, dos presos, dos exilados pela ditadura

Anistia, 41 anos

Agora, neste mês de agosto, a anistia completa 41 anos. Importante lembrá-la no momento em que essa conquista está sob ataque cerrado. Faço uma observação logo à abertura desse texto: ninguém deve acusar o atual presidente de fraudar o seu programa. Bolsonaro sempre defendeu a tortura como método legítimo, como apoiou todos os demais crimes da ditadura. A eleição dele foi feita, também, sob tais ideias. O arcabouço institucional em torno da anistia sofre por isso uma investida feroz do atual governo. Ele cumpre o prometido. Não enganou ninguém.

Estou tratando do tema por conta do aniversário de 41 anos da Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, e porque provocado pela Associação Brasileira dos Anistiados Políticos do Sistema Petrobras e demais Empresas Estatais (Abraspet). No dia 21 de agosto, dividi mesa com Diva Santana, Germino Borges, Enéas Almeida, Carol Proner e Luciano Campos. A mim, coube falar sobre perseguição e tortura durante o governo militar. A mesa compôs um painel amplo sobre a anistia, inclusive e principalmente sobre a ofensiva atual contra ela.

Dedico-me a uma segunda observação. A anistia foi uma conquista do povo brasileiro. Parece óbvio, mas não é. Há uma espécie de olhar permeado de lamento sobre nossa história, a nos revisitar permanentemente. O lamento é sobre o fato de ela não ter sido ampla, geral e irrestrita. De os torturadores não terem sido punidos, como deveriam. De não ter havido uma real justiça de transição. De os assassinos não terem sido julgados e punidos. Tudo muito verdadeiro. É fácil concordar com tais ponderações, chamemos ponderações. Vamos, no entanto, numa síntese, ao quadro político da época, concentrado na luta pela anistia.

Todos sabem, deviam saber, de nossa proposta, de toda a esquerda e todos os setores democráticos e progressistas, por uma anistia ampla, geral e irrestrita. Nunca houve qualquer vacilação com relação a isso. Vínhamos num processo de acúmulo de forças, paciente e seguro, envolvendo a nova classe operária combativa e determinada, as camadas médias, a esquerda egressa da luta armada convertida à institucionalidade, o PCB e suas convicções em favor da luta democrática, os movimentos pela anistia envolvendo tanta gente, sempre sob a palavra de ordem ampla, geral e irrestrita.

Chegamos aonde chegamos, e ela não foi exatamente a anistia de todos os nossos sonhos. Mas, foi, ao mesmo tempo, a anistia dos nossos sonhos – por que não dizer isso? Por que não proclamar aquele 28 de agosto de 1979 como um das datas fundamentais da luta do povo brasileiro? Não foi benesse da ditadura. Conquista do nosso povo. Nós hoje a defendemos com unhas e dentes, erguemos barricadas para assegurar aquelas conquistas, nos batemos contra as investidas a tentar desfigurá-la inteiramente.

Quanta alegria, não?

Quanta emoção.

Quanta euforia com a volta do irmão do Henfil, com o retorno de tantos exilados, lideranças nacionais pisando novamente o solo da pátria, a libertação de tantos companheiros das masmorras da ditadura. Um novo momento se abria para a nossa luta. O governo Figueiredo seria o último da ditadura. Mas muitos de nós têm um olhar enviesado sobre a nossa história. A cada vitória avançam um mas. E aí predomina uma desconsideração completa da correlação de forças, como se bastasse a vontade indômita de uns poucos para garantir não fosse como foi, como se não interessasse o real quadro político a impor limites, e sempre há limites.

A história não é feita por atores solitários. A anistia foi fruto de muita luta, de milhares e milhares de pessoas, pelo Comitê Brasileiro de Anistia, pelo Movimento Feminino de Anistia, pelas igrejas, sobretudo a Igreja Católica, e foi uma grande conquista. Estamos, nesse momento, numa difícil correlação de forças, na luta para assegurar o disposto na lei, sob um governo fascista com apoio popular, ao menos nesse momento.

A correlação de forças sempre deve ser considerada, e só o avanço da consciência do nosso povo, sua mobilização em favor do pensamento democrático permitirão, primeiro, garantir o já conquistado pela lei de anistia, e depois dar passos no sentido de ampliá-la, se tivermos força. Viva a anistia conquistada em 1979, sem “mas”, nem “porém”, nem “veja bem”.

No fundo dessa discussão, um espectro nos observa: o de nossa tradição das transições por cima. As classes dominantes conseguiram ao longo de nossa história de alguma forma se antecipar e entregar os anéis para não perder os dedos. Em tantos episódios, é possível observar isso, e na transição da ditadura para democracia, isso é visível. Mas, entregam os anéis. São obrigadas a fazê-lo.

É a velha luta de classes. Nada, nas transições brasileiras, foi feito sem abalos, sem idas e vindas, sem avanços e recuos do lado dominante e do lado das classes exploradas. Passar da ditadura à democracia foi um passo extraordinário. Passar da inexistência da anistia para sua efetivação, também. Podemos mudar a tradição de transições por cima?

Depende essencialmente de mudanças nos corações e mentes do nosso povo. É decisão das classes trabalhadoras nessa nova fase, substancialmente nova, do mundo do trabalho. E de outras classes sociais tendentes a assumir bandeiras democráticas e progressistas. Não é a ferocidade militante o elemento a modificar tal tradição.

É política, é ação das massas, é consciência política delas. Nosso jacobinismo precisa dar lugar à compreensão de uma longa caminhada, um passo adiante e dois atrás às vezes, travessia do deserto, e mais ainda num momento de defensiva, como o vivido por nós nessa conjuntura. Ou não vivemos um momento de defensiva?

O que não podemos é correr o risco de maldizer os pobres, o povo. Lamentar seus equívocos, verdadeiros sob muitos aspectos, até podemos. Constatar a temporária servidão voluntária de milhões. As classes dominadas, por dominadas, por exploradas, por violentadas, costumam rotineiramente não dar murro em ponta de faca, salvo exceções. Preferem ir acumulando forças, o heroísmo prosaico de cada dia. Equivocando-se muitas vezes. Olhando o entorno. Só dar o passo decisivo quando se sente forte o suficiente. E chegar a isso não é como um estalar de dedos. Demora.

Finalizo, nesse aniversário da anistia, voltando ao ponto de partida, insistindo: vamos celebrar o 28 de agosto como uma vitória. Uma grande vitória dos perseguidos, dos presos, dos exilados pela ditadura. Insistir: viva a anistia de agosto de 1979.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar,Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros

Publicado originalmente no site da Fundação Perseu Abramo

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