Daniel Munduruku: Indígenas são caçados porque praticam o comunismo

“Os socialistas perseguidos são aqueles que ainda seguram a fronteira do capitalismo. Os últimos socialistas somos nós”, diz escritor indígena

O escritor indígena Daniel Munduruku é socialista duas vezes, conforme seu próprio conceito: por nascença e por opção. “No Brasil, nunca teve socialismo, nunca teve comunismo, nunca teve uma experiência de fato disso para você dizer ‘vou caçar comunistas’”, afirma Daniel, filiado desde 2019 ao PCdoB. “Os únicos comunistas no Brasil chamam-se povos indígenas. São esses que não mantém propriedade privada, que são pelo coletivo, que têm um modo de vida simples, que dividem tudo entre si.”

Com base nessa interpretação da realidade brasileira, o escritor ataca os desmandos do governo Jair Bolsonaro contra as nações indígenas. “Quando vi que a primeira ação do governo foi dividir a Funai em dois ministérios – o Ministério da Família com a doida da goiabeira e o Ministério da Agricultura com a louca da motosserra –, entendi que se tratava da caçada aos últimos socialistas”, resume.

Segundo ele, “os socialistas perseguidos são aqueles que ainda seguram a fronteira do capitalismo, que se chocam frontalmente com isso. É a última fronteira a ser conquistada. É aquilo que os militares tentaram fazer, nos anos 70, e não conseguiram. Nesse sentido os últimos socialistas somos nós”.

Indígena do povo Munduruku, Daniel nasceu há 56 anos em Belém. Passou os primeiro sete anos de sua vida na aldeia Maracanã, interior do Pará. No final de 2019, foi procurado por um vizinho na pequena cidade de Lorena (SP), onde vive atualmente. O tal vizinho, um português filiado ao PCdoB, tinha a missão de formar um grupo de vereadores de esquerda com chances de se elegerem no município do interior paulista.

Munduruku disse que toparia se candidatar era a prefeito. Acordo feito, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e é, portanto, pré-candidato à Prefeitura de Lorena. Diz, confiante, que vai ganhar: “Sempre tive uma vontade de experimentar. A gente sempre fala muito mal de político, mas só é possível mudar alguma coisa de fato, em termos de políticas públicas, quando se é político”.

Vivendo na periferia de Belém, no bairro da Sacramenta, Munduruku foi “uma criança feliz, aliás, como todas deveriam ser”, trepado em mangueiras em flor, que lhe forneciam deliciosos frutos, e divertindo-se com os pés cravados nos quintais da vizinhança. As memórias ruins surgem quando a escola dos brancos vem à recordação. Apesar de todos ali se parecerem com ele, Daniel foi apontado como “índio”, pelos coleguinhas, por ter vindo de uma aldeia de fora de Belém.

No começo, não entendeu aquela palavra: “índio”. Tampouco as risadas dos meninos que compartilhavam com ele a pele bronze, os olhos puxados, os cabelos negros lisos. Não sabia o que era ser “índio”, costumava achar que era “gente” mesmo. Matutou, então, que “índio” era o nome de algum passarinho que ainda não conhecia, até entender que a piada de que todos riam era ele.

Em seu livro Memórias de Índio – Uma Quase Autobiografia (Edelbra, 2016) existe um capítulo chamado “Nunca gostei de ser índio”, em que Daniel narra o pesado bullying e a discriminação racial de que foi alvo na infância. Ele estudou a vida toda em escolas dos padres salesianos, onde aprendeu o ofício de gráfico offset. Aos 15 anos, tornou-se noviço.

Encantado pelo trabalho social da ordem de Dom Bosco, o garoto das pernas rápidos, treinadas nas matas e quintais, portanto bom de bola, resolveu ser padre. Na Escola Salesiana do Trabalho, onde os meninos chegavam de dia e ficavam até de noite, os alunos também fazia pequenos serviços como lavar louça e ajudar na limpeza. Em uma dessas incursões, Daniel foi limpar a biblioteca dos padres o que abriu sua cabeça para os livros.

Mas prefere TV aos livros, sobretudo filmes de ação. Daí vem a inspiração para aventuras ameríndias de sua autoria, como O Olho da Águia (Ed. Leya, 2013), nascido originalmente como roteiro cinematográfico, e O Karaíba – Uma História do Pré-Brasil (Ed. Melhoramentos, 2010) – que narra, de maneira envolvente, a vida dos tupinambás antes da chegada dos europeus.

Caraíbas eram pajés errantes que vagavam de aldeia em aldeia fazendo profecias e, no caso dos guaranis, prometendo encontrar a “Terra sem males”. Entre Deus e Tupã, os sacerdotes indígenas têm um papel importante na literatura do indígena que quase virou sacerdote da religião dos brancos. É o caso de seu primeiro livro, Histórias de Índio (Companhia das Letrinhas, 1996).

“O menino que não sabia sonhar é o conto que abre o livro. Era um menino com um dom para ser pajé, mas nasceu com um defeito de fabricação: não sabia sonhar. E uma das características de um pajé munduruku é poder sonhar”, afirma Daniel. “Tem que ter esse dom de interpretar sonhos. Entre os mundurucu, todos os meninos nascem com o dom da pajelança. As mães vão até o pajé, quando as crianças nascem, pedir para eles não desenvolverem esse dom.”

O menino Daniel – nascido com dom para pajé, portanto – queria ser santo. Dedicava-se aos esportes, era muito tímido, tinha “pé atrás” com a cidade. Hoje tergiversa: “Não posso dizer que não acredito em Deus, ainda que não acredite. Sei que existe uma força para além da gente. Isso está na floresta, está na natureza, no pôr do sol.”

Depois que saiu do seminário, ao terminar a faculdade salesiana em Manaus (AM), passou a dar aulas. Precisou, no entanto, de uma validação do diploma de seminarista para seguir como professor. Em Lorena, onde fez parte do noviciado, foi terminar os estudos de pedagogia em uma das faculdades dos Salesianos, licenciando-se para dar aulas de Psicologia e História. Na cidade do interior paulista, apaixonou-se e casou, já com mais de 20 anos.

Daniel Munduruku ostenta o impressionante número de 53 livros escritos e publicados em 56 anos de vida. “Escrevo em qualquer canto. Geralmente as histórias vêm de uma vez. Nunca fui muito disciplinado para isso.” Depois de ser jubilado em um mestrado marcado por uma série de turbulências, inclusive a morte de sua orientadora, Daniel fez doutorado na USP. Doutor Munduruku, o educador, foi quem deu à luz o escritor Daniel Munduruku.

Como começou? “Não tinha muito a intenção de escrever e publicar. Eu tinha começado a contar histórias para crianças em escolas – e as crianças sempre me faziam as perguntas mais cabeludas possíveis, próprio das crianças. Uma vez, uma menina me perguntou onde encontrava aquelas histórias para ler. E aquela pergunta eu não sabia responder. Aquilo acendeu uma luzinha na minha cabeça: se essas histórias não estão contadas, por que não contá-las? Por que não escrevê-las?”.

Quem abriu os caminhos para que essa semente de livro se tornasse uma floresta densa de obras literárias foi a historiadora e escritora Lilia Schwarcz, uma das fundadoras da Companhia das Letras, professora de Daniel na USP. Foi a prestigiada editora que lançou o infantil Histórias de Índio. Eclodia aí o bem-sucedido ramo da literatura infanto-juvenil feita por autores nativos, como Lia Minapoty, Olívio Jekupé, Eliane Potiguara, Kaká Werá, entre outros. “Fui criando praticamente uma horda de escritores de livros para criança.”.

No primeiro momento, Daniel não tinha experiência com as técnicas narrativas e precisou de ajuda da escritora Heloísa Prieto para compor seus textos final. Sua literatura bebia da fonte farta e ancestral da oralidade. Em uma entrevista para o jornal mineiro O Tempo, Daniel refletiu: “Se pensarmos como leitura de mundo – que passa pela dança, pela música, pelo canto, pelo grafismo –, diria que é muito anterior à concepção de literatura ocidental”.

“A escrita indígena é apenas mais uma manifestação da memória ancestral – e a verdadeira literatura é formada pelo conjunto de manifestações que são expressas pelo corpo”, teoriza. “Esse conjunto holístico é que chamo de literatura indígena.”

Pioneiro da literatura indígena contemporânea, Daniel é um grande articulador e se empolga com o crescimento de candidaturas indígenas nas eleições 2020. “Precisamos ocupar espaços. Tem um grupo bastante grande se prontificando a concorrer a uma vaga. Pode ser que a gente seja eleito e faça um movimento dos indígenas na política, que estimule os mais novos a acreditar”, acredita ele.

Seu engajamento partidário se relaciona com o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e com os ataques de Bolsonaro aos povos indígenas. “Nos 13 anos do PT no poder, cresceu muito o número de universidades, de negros na política, de indígenas nas universidades. A cultura africana e a cultura indígena estavam sendo mais valorizadas e vistas como arte”, diz. “Essas mudanças incomodam porque são uma virada na pirâmide. E quando a pirâmide tende a virar, a minoria [mais rica] começa a se sentir incomodada e a manipular a mente das pessoas”.

Narrador da vida de pajés e caraíbas, e ex-aspirante a padre, Daniel se aproxima do fim da prosa versando sobre fé: “Escolhi ser professor porque acredito que o professor é aquele que professa alguma fé nas pessoas. Eu professo minha fé na humanidade. Isso não significa que eu seja otimista”, afirma. “Minha intenção não é mudar nada – é provocar. Provocar as pessoas a quererem mudar. Mas, se elas não quiserem mudar, tudo bem, o problema é delas.”

Com informações do UOL