Especialistas discutem causas da violência policial em plena pandemia

Glauco Silva de Carvalho e Bruno Paes Manso comentam os fatores responsáveis pela violência e afirmam que não há solução unidimensional, mas diferentes aspectos institucionais a serem atacados.

PM de São Paulo imobiliza homem negro que participava de manifestação contra a morte de um jovem da comunidade do Moinho.ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL

Mesmo durante a pandemia, a violência policial vem crescendo no Brasil, o que parece um contrassenso apontado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. Em entrevista à Rádio USP, dois especialistas discutiram as motivações e soluções para reduzir estes índices. Quando grande parte da população está confinada, quando deveria ter uma diminuição dos conflitos nas ruas, é registrado o aumento dos casos de violência policial.

Glauco Silva de Carvalho, doutor em Ciência Política pela FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP e coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, afirma que a militarização não é o único fator responsável pela crescente violência policial. Bruno Paes Manso, mestre e doutor em Ciência Política e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, aponta que o Brasil é o país com maior número de homicídios do mundo, mesmo sem estar presente em nenhuma guerra, e “isso é um sintoma da fragilidade política das instituições”.

Carvalho listou outros aspectos que devem ser levados em consideração, para além da militarização, sempre mencionada pela esquerda política como o cerne do problema da polícia brasileira. Para ele, esse é um dos problemas, mas não o principal ou único. Ele mencionou os 70% da população europeia (França, Bélgica, Itália, Espanha, Turquia, Portugal), que são policiadas por militares e não sofrem os mesmos problemas brasileiros.

Ele também menciona o fato dos bombeiros serem mais militarizados, porque aquartelados, que os policiais e não se observa o fenômeno dramático de suicídios que ocorre na Polícia Militar. “Precisamos rever esta associação entre violência e militarização”, diz ele.

Para ele, a polícia já foi mais militarizada no início do século XX, do que depois do golpe de 1964, quando mudou de nome. “O sistema brasileiro é arcaico, esclerosado, mesmo, mas o problema não está na militarização. A solução não deve vir apenas da polícia (interna corporis), mas deve envolver outros setores da sociedade, como a universidade”, comenta o coronel.

“O grande desafio das polícias é estabelecer a legitimidade da instituição e a reconciliação. Houve uma perda de contato entre a polícia e a comunidade com uma obstaculização entre este contato. Este vínculo perdido nos últimos 20 anos precisa ser refeito, porque vai dar legitimidade à polícia”, diz o estudioso, que voltou a se interessar pelo assunto da violência policial, conforme o discurso do presidente Bolsonaro começou a se expandir na sociedade de forma a estimular este tipo de comportamento na instituição.

“O policial parou de acreditar no sistema criminal (promotor, juiz e mesmo a polícia). Muitos policiais foram mortos, os culpados absolvidos, e ele [policial] está nas ruas como ponta do sistema e quer sobreviver”, diz o militar, acrescentando que a violência contra policiais também aumentou, conforme as armas foram se sofisticando e aumentando sua letalidade.

Outro fator é que, em São Paulo, especificamente, há uma má distribuição. Há a mesma proporção de agentes em áreas extremas, como Brasilândia e Capão Redondo, e em áreas centrais em que o risco para o policial é menor. Outro ponto importante para poder explicar este tipo de violência é que não houve, nos últimos 25 anos, aumento no efetivo policial, enquanto a população teve incremento de 10 milhões de pessoas [no Estado de São Paulo].”

Carvalho ainda mencionou a importância de retomar a democracia e o diálogo institucional, tão em falta nestes momentos “surreais” de gabinete do ódio. Se a cidadã que tem o pescoço esmagado por um policial o agrediu primeiro com cabo de vassoura, há um clima de hostilidade entre sociedade e polícia que precisa ser curado pelo diálogo. “Precisamos pacificar relações no Brasil e procurar soluções dentro da democracia como instrumento de resolução de problemas”, defendeu.

Urbanização no regime militar

A morte de George Floyd nos Estados Unidos foi o estopim de uma discussão sobre violência policial, não só em terras americanas como também brasileiras. Soma-se ao fato o aumento de casos de violência policial em vários Estados do Brasil. É um país com os piores índices de violência, apesar de não ter conflitos étnicos, religioso e políticos como outras localidades.

Em termos históricos, por volta da década de 1950, com a urbanização rápida das principais cidades brasileiras, a violência passou a aumentar, pois a organização da chegada do fluxo de pessoas saídas do campo foi improvisada. O pesquisador conta que, com a criação da Polícia Militar e as forças de segurança que teriam papel crucial na implementação da ditadura de 1964, passa a ser realizado um patrulhamento territorial e ostensivo em bairros considerados como perigosos. Isso contribuiu para que a ação da polícia se tornasse mais violenta, conforme passou a encarar o cidadão como inimigo interno devido ao combate a guerrilhas urbanas antirregime.

De janeiro a maio de 2020, o número de mortes pela Polícia Militar no Estado de São Paulo bateu recorde de 440 mortes, o maior número já registrados desde 2001, mesmo com a quarentena. “Precisamos entender que isso é um contrassenso. Com as pessoas saindo menos para a rua por conta da pandemia, o número de homicídios deveria diminuir, mas esse crescimento foi registrado em vários outros Estados, como o Rio de Janeiro, que passou por verdadeiras chacinas em abril”, relata Manso.

As razões desse crescimento podem ter relação com o discurso defendido pelo presidente Jair Bolsonaro e também a pressão enfrentada todos os dias pelos profissionais da segurança pública, já que está havendo uma reversão no número de homicídios que vinha caindo há alguns anos.

“Essa estrutura que se cobra da polícia de constante guerra ao crime, uma atitude equivocada, torna a vida do policial muito sofrida, e ele veste essa carapuça. Quando alguém passa a legitimar esse discurso de extermínio do inimigo, por exemplo, eles acabam por entrar em sintonia com esses ideais por conta do próprio cotidiano, mesmo que essas atitudes nem sejam estimuladas por seus oficiais”, explica. Para ele, para que a polícia atue como mediadora de conflitos, é preciso tornar a estrutura mais flexível e não tão hierarquizada como é.

Para modernizar a polícia, Manso acredita que seja necessário não só investir na formação dos policiais, com aulas sobre direitos humanos e treinamento permanente para os que estão nas ruas, mas também estudar com inteligência o mercado ilegal vinculado ao crime, para tirar a força financeira desses grupos criminosos atuantes em toda uma cadeia comercial.

“Ao invés de mandar policiais todos os dias para pegar essas pessoas, numa guerra ao crime, seria mais efetivo investir nessas investigações e estrategicamente enfraquecer esses grupos. Precisamos repensar esse modelo de ‘enxugar gelo’, que só causa mais revolta, em que jovens pobres e negros que lotam os presídios se organizam para combater o Estado. Falta vontade política para construir soluções à base do diálogo e aproximar a polícia da sociedade em uma relação de confiança, e não medo”, diz.

Ele ainda conclui dizendo que não falta debate sobre o assunto, mas vontade política, consenso entre partidos em torno dessas soluções discutidas amplamente. Para ele, é preciso voltar a fazer política, na medida em que nos últimos anos houve um descrédito na política. proporcional à busca por soluções policialescas e punitivistas. “A solução está na política, em desarmar essa estrutura de guerra montada e mostrar que é possível fortalecer a solidariedade na comunidade”, defendeu.

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