Governo Bolsonaro faz “guerrilha ideológica”, diz Luiz Eduardo Soares

Autor de Elite da Tropa, Luiz Eduardo Soares denuncia dossiê bolsonarista

O cientista político Luiz Eduardo Soares, um dos alvos do criminoso dossiê produzido pelo Ministério da Justiça contra os “policiais antifascistas”, disse que recebeu a notícia com indignação. Para Soares – que é citado como “formador de opinião” do grupo –, o governo Jair Bolsonaro mais uma vez “atenta contra a democracia”. Ele acusa o presidente de usar a estrutura do Ministério da Justiça para fazer “guerrilha ideológica”.

O dossiê, revelada na sexta-feira (24), foi produzido em junho por uma unidade pouco conhecida do ministério, a Seopi (Secretaria de Operações Integradas). O levantamento listou 579 agentes da segurança púbica estaduais e federais, alguns com fotografias e endereços de redes sociais, que haviam assinado dois manifestos, em 2016 e 2020.

O relatório sigiloso inclui um subtítulo denominado “Formadores de opinião”. Ali são citados Soares, o especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro, o secretário estadual do Pará Ricardo Balestreri e o acadêmico da Universidade Federal da Bahia Alex Agra Ramos.

Formado em Literatura, mestre em Antropologia e doutor em Ciência Política, Soares foi secretário nacional de Segurança Pública do próprio Ministério da Justiça no primeiro ano do governo Lula (2003) e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do governo do Rio de Janeiro (1999-2000). Tem 20 livros publicados, entre os quais a coautoria dos dois volumes de Elite da Tropa – que deram origem aos dois filmes de grande sucesso comercial Tropa de Elite.

Soares foi também professor da Unicamp e do IUPERJ, além de acadêmico visitante em Harvard, Universidade de Virginia, Universidade de Pittsburgh e Universidade Columbia. Ele concedeu esta entrevista ao UOL por email:

UOL: Como pessoalmente recebeu a informação de que é um dos alvos do dossiê feito pelo governo Bolsonaro via Ministério da Justiça?
Luiz Eduardo Soares: Recebi com indignação porque se trata de evidente violação da legalidade constitucional. Mais uma vez, o governo Bolsonaro atenta contra a democracia. Agora, ensaiando a recriação do famigerado SNI [Serviço Nacional de Informações].

UOL: Como recebe a afirmação de que seria “formador de opinião” do movimento dos policiais antifascistas? Que livros e escritos de sua autoria citaria que poderiam ser de interesse dos policiais antifascistas? Como seu livro Desmilitarizar tem repercutido entre os policiais antifascistas?
LES: Todo pesquisador e professor universitário que publica sua produção intelectual participa, potencialmente, da formação das opiniões de todos os segmentos sociais. Como boa parte do que pesquiso tem por objeto segurança pública, Justiça criminal e suas instituições, os profissionais dessas áreas naturalmente terão mais interesse em ler o que escrevo e ouvir minhas palestras do que os não especialistas. Como entendo que não faz sentido o que chamamos “segurança pública” sem a vigência do Estado democrático de direito, seria de se esperar que os profissionais das polícias, do MP, da Justiça e das áreas conexas que valorizam meu trabalho sejam, como eu, contrários às ditaduras e ao nazi-fascismo. Espero que todos os meus livros, não apenas o Desmilitarizar, sejam lidos e apreciados pelos cidadãos que se opõem ao nazi-fascismo e às ditaduras, inclusive os policiais.

UOL: Participou de debates e lives com policiais antifascistas nos últimos meses? Atribui a essas discussões o fato de ter se tornado um alvo do governo?
LES: Desde o início da pandemia participei de 59 lives, com colegas e interlocutores brasileiros e estrangeiros, alguns são policiais, outros, não. Mas todos são contrários ao fascismo, até porque eu me recusaria a participar de uma live com cidadãos, policiais ou não, a favor do fascismo.

UOL: Como avalia o movimento dos policiais antifascistas, o que pretendem, eles de alguma forma representam ameaça à segurança pública?
LES: O movimento é uma expressão extremamente positiva e demonstra que nem todos os profissionais que trabalham na segurança pública são insensíveis às questões democráticas e aos direitos humanos. A grande ameaça à segurança pública é a política inconstitucional, racista e brutal, responsável pelo genocídio de jovens negros e pobres nos territórios vulneráveis. Ameaça à segurança pública é a flexibilização do acesso às armas.

UOL: O que indica a descoberta desse levantamento do Ministério da Justiça?
LES: Indica que as piores suspeitas sobre a recriação do SNI eram bem fundamentadas.

UOL: Esse episódio revela descontrole das atividades de inteligência no país?
LES: Não, pelo contrário: revela a tentativa de centralização por parte do governo federal e o direcionamento ideológico e político do foco de investimentos. Em vez de investigar as milícias, que proliferam e se fortalecem, o governo federal gasta recursos humanos e materiais para fazer guerrilha ideológica.

UOL: Como deveria ocorrer esse controle, quem deveria fazê-lo?
LES: O governo está se aproveitando das indefinições legais, que decorrem das imprecisões sobre metas e atribuição de responsabilidades da PNI (Política Nacional de Inteligência), conforme o decreto 8.793, de 2016, e do Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 sobre a Estratégia Nacional de Inteligência. Marco Cepik e Renato Sergio de Lima têm chamado atenção para esse grave problema. É imperioso que o Congresso e os órgãos de controle judiciais assumam a iniciativa de proceder às definições, cada vez mais urgentes, e que o façam da perspectiva da transparência e da garantia de direitos.

UOL: Qual a diferença entre “inteligência na segurança pública” e outros tipos de serviços de inteligência, como o GSI e a Abin?
LES: Uma visão contemporânea, efetivamente democrática e arejada, liberta a ideia de “inteligência” das sombras da espionagem, refúgio de todo tipo de ilegalidade e violação de direitos. Inteligência hoje deve ser vista como conhecimento, identificá-lo e colocá-lo a serviço de políticas públicas, com plena transparência e apoio das instituições da sociedade civil. Por exemplo: centros universitários e institutos de pesquisa já demonstraram à exaustão que incursões bélicas em favelas não reduzem criminalidade e provocam perdas, danos e risco, inclusive mortes de suspeitos, inocentes e policiais. Caberia à inteligência levar as evidências amplamente analisadas aos formuladores de políticas de segurança para que cessem de repetir os erros imensos que continuam a cometer, cujos efeitos, além da letalidade, são a reprodução do racismo estrutural e a intensificação das desigualdades.

UOL: Nos estados está havendo descontrole da inteligência nas polícias Civil e Militar?
LES: Nunca houve controle adequado na área de inteligência dos estados que, a rigor, cumpriria apenas à instituição civil, responsável por investigações. Essa área trouxe a marca deletéria do autoritarismo e da manipulação política, não raro tendo recepcionado egressos dos porões da ditadura. O fato é que a transição democrática não alcançou a segurança pública e o sistema prisional. Houve continuidade, não uma ruptura, o que nos fez herdeiros de estruturas organizacionais, culturas corporativas e práticas da ditadura.

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