Como Israel busca legitimar a anexação da Palestina | parte 1

Juristas palestinos, israelenses e internacionais dedicam-se a demonstrar como Israel busca legitimar a anexação e o apartheid para sustentar a ocupação militar e a colonização da Palestina. Entender a judicialização do despojo dos palestinos de seu lar é fundamental para a formulação de estratégias, inclusive pelos movimentos sociais. Vários instrumentos têm sido criados e uma entidade israelense oferece importante base de dados que pode ajudar.

Durante as eleições, em 2019, primeiro-ministro Benjamin Netanyahu promete anexar todas as colônias israelenses na Cisjordânia.

Como diversas vozes têm denunciado no último mês de mobilização reforçada, com o sabidamente inaceitável “negócio do século” anunciado em janeiro de 2020, Donald Trump alegou buscar uma solução oferecendo aos palestinos um estado aleijado, inviável, composto por bantustões que seguiriam sem soberania e sob a tutela de Israel. Assim o presidente estadunidense calcula um fim para o “processo de paz”, o fracasso diplomático, pelo que debitará a responsabilidade aos palestinos, que não podem aquiescer diante de tamanho acinte.

A história é longa; busca-se encerrar não “apenas” trinta, desde os malfadados Acordos de Oslo dos anos 1990, mas sete décadas de um impasse que favoreceu a consolidação e expansão do Estado de Israel às custas do direito do povo palestino à autodeterminação. Por isso, cresce e se amplia a oposição ao que os sucessivos governos já promovem oficialmente desde que Israel passou a ocupar territórios palestinos para além das fronteiras do Armistício de 1949, a chamada “linha verde”, ou seja, a expansão territorial através da anexação.

Embora encorajado por Trump, Benjamin Netanyahu, o premiê com mais tempo no cargo na história de Israel, já era o recordista na construção de colônias em território palestino. Mas na prática e através de leis, sucessivos governos vinham “estendendo a soberania de Israel” a essas áreas, servindo-se inclusive dos mecanismos de controle supostamente temporários incluídos nos Acordos de Oslo, que deveriam ter culminado numa solução definitiva na mesma década de 1990. De olho na região de Jerusalém e no fértil Vale do Jordão, diversas leis e políticas compuseram uma estratégia de expulsão dos palestinos, especialmente beduínos que, resilientes, continuaram reconstruindo lares e replantando cultivos destruídos pelo regime israelense sob diversos pretextos, especialmente “securitários”.

Donald Trump e Netanyahu conspiram pela anexação da Palestina.

Assim Israel manipula o direito internacional humanitário —valendo-se até da brecha para que uma potência ocupante tome certas medidas temporárias se militarmente “necessárias”— para justificar práticas e todo um regime que já não é mais apenas uma ocupação militar. Este regime já dura mais de cinco décadas e evidentemente não é temporário, mas uma colonização de assentamento, em pleno século 21, imposta inclusive através do apartheid, um crime contra a humanidade. Assim o definem diversos juristas como os ex-relatores especiais da ONU Richard Falk e John Dugard, inúmeros juristas palestinos, renomados ativistas sul-africanos e mais recentemente, o relatório liderado pelo advogado Michael Sfard, da organização israelense Yesh Din que, segundo a publicação local +972, por muito tempo evitou o conceito mesmo ao condenar a ocupação militar, mas agora denuncia o “regime ilegítimo” de Israel na Palestina.

Organizações defensoras dos direitos dos palestinos e de denúncia das práticas da ocupação beligerante sustentada por Israel sobre territórios árabes —também sírios e libaneses— desde a guerra de junho de 1967 têm habilmente sistematizado leis e práticas de “transferência forçada”, repressão da resistência palestina e anexação, traçando as origens de muitas delas até o Mandato Britânico, que controlou a região entre as décadas de 1920 e 1940. Em 1947 a Assembleia Geral da ONU propunha a partilha da Palestina entre judeus e árabes, adotando uma proposta de solução rejeitada pelos árabes quando apresentada pelo Mandato Britânico ao que os palestinos já enxergavam como a colonização do território por europeus. Em 1948, consolidando a Nakba, a Catástrofe, através da expulsão, a destruição e o massacre da população nativa, Israel declara “independência” do regime britânico que já batia em retirada, abrindo nova fase do martírio do povo palestino.

Frente jurídica

O BADIL, cuja assessora entrevistamos em maio, a histórica Al-Haq e outras entidades que compõem o Conselho de Organizações Palestinas de Direitos Humanos (PHROC), o movimento pelo Boicote, Sanções e Desinvestimento (BDS) e a PNGO, Rede Palestina de Organizações Não-Governamentais —atuam em grande parte de forma interseccional e internacionalista. Essas redes têm promovido intensa campanha de apelo à mobilização mundial contra a anexação, mas também pela defesa dos direitos humanos dos palestinos sob ocupação e no refúgio, inclusive trabalhando junto ao Tribunal Penal Internacional e agências ou mecanismos da Organização das Nações Unidas (ONU). Como destrincha a advogada palestina Noura Erakat em seu recente livro Justice for Some, não se pretende dizer que a tatática é nova já que, desde o Mandato Britânico, mas especialmente desde a década de 1970, através da Organização pela Libertação da Palestina, os palestinos recorrem ao direito internacional para promover sua causa nacional.

Há ainda empenhadas organizações israelenses como B’Tselem e Yesh Din, entre várias outras, que também sistematizam e atuam contra as leis e práticas do regime israelense em Israel e nos territórios palestinos ocupados. Mais recentemente, Yesh Din lançou uma base de dados das leis e iniciativas parlamentares que compõem o esforço de anexação dos territórios palestinos. Desde 1º de julho está iminente a apresentação ao Parlamento israelense de uma proposta do governo Netanyahu, por acordo para a formação da coalizão governamental e com a chancela de Trump. Embora a conjuntura doméstica israelense e cálculos de custos diplomáticos estejam impedindo a medida, a oficialização da anexação é uma ameaça real, até porque já vigente na prática. Ademais, já havia outras propostas em trâmite.

A proposta de lei do Vale do Jordão número 5779-2019, catalogada sob a categoria “Aplicação da lei e a jurisdição israelense (soberania)”, ou seja, anexação de jure daquela área, foi submetida em 27 de maio de 2019 por Mordechai “Moti” Yogev, um ex-coronel do exército israelense e parlamentar pelo Lar Judaico entre 2013 e 2020. Já posta em debate, está em estado suspenso com a transição das sessões.

De acordo com a Yesh Din, a 20ª legislatura do Parlamento de Israel (Knesset), resultante das eleições antecipadas de 2015, foi a mais profícua para a anexação e colonização da Palestina, com cerca de 60 propostas de lei que defendem a anexação de blocos de colônias específicos, de regiões ou da própria Cisjordânia inteira, assim como outras medidas destinadas a expulsar palestinos, como a desapropriação de terras, a regularização de colônias ou cultivos construídas ou iniciados por colonos sem a permissão do governo israelense e a imposição de ainda maior controle sobre questões civis e penais palestinas. Oito delas foram aprovadas e tornaram-se leis. Para a organização, também têm ficado evidentes os passos tomados pelo regime para a anexação de jure através das petições adjudicadas pelas cortes israelenses e publicações do Ministério de Relações Exteriores, com mudanças que “ostensivamente colocam em xeque o status legal da Cisjordânia como território ocupado, a autoridade de Israel ao operar lá e o dever de Israel de proteger os direitos e propriedades da população palestina vivendo sob sua ocupação.”

Mais quatro propostas de lei similares à de Yogev foram apresentadas, inclusive pelo próprio, já na 21ª legislatura, iniciada em abril de 2019 para durar menos de um semestre. Yogev propunha “aplicar a soberania [israelense] a essas áreas”, incluindo o Vale do Jordão, várias colônias e suas áreas comerciais e industriais, sítios arqueológicos, estradas e todas as “terras do Estado” —assim arbitrariamente declaradas por Israel— entre as colônias, na Área C.

Recorde-se que a Área C é aquela definida pelos Acordos de Oslo como militarmente controlada por Israel temporariamente, até que no fim da década de 1990 fossem concluídas as negociações sobre o chamado “status final”, com a definição de fronteiras entre Israel e o Estado da Palestina independente. Portanto, toda e qualquer colônia e estrutura construída no território por Israel é intrinsecamente ilegal, porque viola o direito internacional humanitário, nomeadamente, as Convenções de Genebra de 1949 que descreve as obrigações de uma potência ocupante, proibindo, entre outras, as políticas de expulsão da população nativa para a colonização do seu território.

Outras propostas de lei igualmente ilegítimas sob o direito internacional listadas pela Yesh Din buscam a anexação de grandes blocos de colônias que já têm status de cidades, como Gush Etzion e Ariel, nas redondezas de Jerusalém, Belém e Hebron, mas também há mais ambiciosas, ou menos veladas, que buscam a anexação de todas as colônias na Cisjordânia —são cerca de 200, com mais de 600 mil habitantes— com três propostas idênticas apresentadas ainda na 20ª legislatura, denominadas “lei da Cisjordânia”. Justificativas incorporam citações da declaração de independência de Israel e afirmam: “Propõe-se que o Estado de Israel aplique suas leis e soberania sobre as áreas de colônias em Judeia e Samaria [Cisjordânia], para preservar seu status como inseparável do Israel soberano.”

Não faltam ações no âmbito jurídico e das relações públicas levadas a cabo pelo regime e por seus defensores mundo afora para deslegitimar as justas reivindicações dos palestinos e as ações das forças solidárias, desde a tentativa de descredibilização do povo palestino como nação, a sua responsabilização por não ter aceitado a imposição da partilha do território nos idos anos 1940, ao defender seu direito à autodeterminação desde o início do século, ou a rejeição da classificação do regime israelense como um de ocupação, alegando, contra todo o consenso internacional sobre o tema, que se trata de território disputado. Na próxima matéria, abordaremos os malabarismos políticos e jurídicos na propaganda pró-Israel, nos lobbies e na frente diplomática em que investem os defensores do regime israelense.

Embora o regime israelense esteja empenhado em legitimar o inaceitável, a anexação de território pela força, através de uma ocupação militar, tal medida será mais uma das várias violações do direito internacional humanitário em que se sustenta a ocupação e colonização israelense da Palestina ao longo das décadas.

*Moara Crivelente é cientista política e membro da Direção Nacional do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)

Fonte: Cebrapaz

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