Fome persiste em favelas e dimensões da violência aumenta na pandemia

Descrença nas decisões de flexibilização do distanciamento físico dificulta a contenção da pandemia, aponta levantamento da Rede de Pesquisa Solidária

Ficar em casa não é uma opção para o trabalhador brasileiro. – Foto: Luiz Ribeiro / Flickr

O aumento da violência doméstica durante a pandemia de covid-19 se torna problema flagrante e cada vez mais grave nas comunidades, aponta nova rodada de consulta a lideranças de comunidades vulneráveis, realizada pela Rede de Pesquisa Solidária entre os dias 6 e 16 de julho. De acordo com o levantamento, a falta de segurança alimentar continua sendo o principal problema dos mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que cresce o uso de entorpecentes e as situações de conflito com a polícia.

A rede ouviu, identificou e sistematizou problemas críticos relatados por lideranças de 75 comunidades, bairros e territórios de alta vulnerabilidade social (de 117 contatadas) nas regiões metropolitanas de Manaus, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Salvador, Joinville e Maringá. As entrevistas da terceira onda do monitoramento foram realizadas entre os dias 6 e 16 de julho.

A metodologia utilizada não prevê estímulo a temas ou problemas específicos porque um de seus objetivos é a captura de situações e eventos inesperados gerados pela crise atual. A primeira pergunta realizada foi sobre a percepção de problemas e dificuldades enfrentados pelas comunidades em decorrência da pandemia e replicou a formulação utilizada nas duas ondas anteriores do estudo. A segunda pergunta, aplicada pela primeira vez nesse painel, voltou-se para a identificação da percepção das lideranças sobre os impactos da flexibilização das políticas de isolamento social nos diferentes Estados brasileiros.

Fome e violência
A nova coleta de dados aponta que os problemas materiais causados pela pandemia – como fome e dificuldade de acesso à renda e emprego – figuram novamente como os mais citados entre as lideranças comunitárias de dez regiões metropolitanas do País. Cerca de 67% das lideranças trouxeram relatos sobre fome e privação de alimentação. O acesso a trabalho e renda segue como o segundo problema mais citado, além disso, permanecem as dificuldades de acesso ao Auxílio Emergencial do governo federal, apontado por cerca de 30% dos informantes, somadas agora às angústias da população pela incerteza de continuidade do benefício.

De acordo com o boletim, o aumento da procura por cestas básicas se dá ao mesmo tempo em que diminuem a distribuição e as doações. Os pesquisadores também destacam que as dificuldades financeiras atingem com força pequenos comerciantes que não se beneficiaram do Auxílio Emergencial ou de políticas alternativas de proteção.

“Logo no segundo mês, ou seja, no mês de abril, final de abril, começo de maio, começou a busca por alimentação, que ela perdura, que ela continua. Claro que já em uma peneira, uma peneira um pouco diferenciada, mas que tem afetado pessoas que a gente jamais pensou que precisaria de cesta [básica]. Esse recorte seria pra dizer que aquela classe C, que tava bem financeiramente, tava equilibrada, essa tem sofrido bastante a consequência da questão da alimentação, então continua nos procurando…” (Liderança comunitária do Jardim Ângela – São Paulo, SP)

A percepção do aumento do contágio e do crescimento do número de óbitos continua nos mesmos patamares do levantamento anterior, o que reflete a permanência prolongada da epidemia no País. Porém, novas dimensões da violência foram registradas e mostraram-se mais diversificadas e segmentadas nesta terceira coleta, com destaque para a percepção do aumento da violência doméstica, da violência decorrente da intensificação do uso de entorpecentes e das situações de conflito com a polícia.

 “Nós estamos tendo muitos casos de violência policial. Policiais que estão entrando nas casas sem autorização. Sem nenhum mandado judicial. Entram nas casas dizendo que tão fazendo busca e apreensão de um jovem, de uma adolescente. Agridem as pessoas verbalmente, fisicamente. Se as pessoas ameaçam filmar, eles ameaçam agredir as pessoas, pegam os telefones das pessoas. Nas últimas semanas, temos tido muitas denúncias, inclusive pessoas em situação de rua e pessoas com algum tipo de deficiência. Então, sempre teve, né, aí no território, na periferia, casos de violência policial. Mas, devido ao isolamento, à pandemia, eles estão se apropriando desse discurso que as pessoas precisam ficar em suas casas e eles estão se utilizando do poder pra agredir as pessoas, pra ferir as pessoas.” (Liderança comunitária de Sapopemba – São Paulo, SP)

Problemas da flexibilização
Segundo os pesquisadores, problemas associados às políticas de flexibilização das medidas de distanciamento físico ganharam relevo, especialmente quando relacionadas ao transporte público (superlotação) e às incertezas ligadas ao retorno às aulas presenciais. Para 80% das lideranças comunitárias de oito regiões metropolitanas foi generalizada a percepção de que as medidas de flexibilização do distanciamento trouxeram impactos negativos para a população; parcela bem menor, de 13,7%, visualizou impactos positivos da pandemia, ligados a maior possibilidade de geração de renda; e 5,5% indicaram que não haveria grandes impactos, sobretudo porque em suas regiões as medidas de distanciamento social não haviam sido aplicadas ou respeitadas.

Entre os impactos negativos, o boletim destaca a percepção de que as medidas de flexibilização do distanciamento físico provocarão um agravamento da pandemia em seus territórios. Ao mesmo tempo, a flexibilização do distanciamento gerou respostas contraditórias: de um lado, a percepção de aumento do medo do contágio em parte da população, que recebeu cerca de 30% das menções de impacto negativo; e, de outro, aumentou a descrença na gravidade da pandemia, apontada por quase 20% dessas menções negativas.

“Muita aglomeração: bares, restaurantes, tudo funcionando. Por mais que tenha horário de funcionamento, no horário de funcionamento acaba tendo um pico. (….) as pessoas tão circulando e as ruas não estão sendo higienizadas como deveriam já que a circulação voltou … nem os bares, nem o comércio … você não percebe nenhuma [ação] nesse sentido. E, mesmo as mudanças preventivas antes usadas de álcool gel e tal, impedir a entrada, isso só está acontecendo nos grandes comércios, nos pequenos comércios isso não tem acontecido na Zona Sul”. (Liderança comunitária do Jardim São Luís – São Paulo, SP)

Ainda que não tenha sido diretamente perguntado, as lideranças indicaram espontaneamente suas opiniões sobre o processo de implementação das ações de flexibilização em suas localidades. E 47% das lideranças criticaram a implementação das medidas de flexibilização e ressaltaram falhas nas ações de responsabilidade dos governos locais para garantir uma abertura segura para a população.

“Estamos sem presidente e os governos tomando decisões pensando na eleição que está próxima. Abertura do comércio local e também shopping center precipitada apenas para atender aos empresários na véspera do Dia dos namorados”. (Líder comunitário da Parada de Taipas – São Paulo, SP)

Oferta de cestas básicas

Os autores do boletim ressaltam que é urgente a regularização da oferta de cestas básicas, uma vez que a segurança alimentar segue sendo o principal problema das comunidades vulneráveis, assim como a execução de medidas de proteção aos pequenos comerciantes. De acordo com o boletim, as decisões sobre a flexibilização do distanciamento físico precisam ser alvo de campanha de informação de modo a dar segurança na volta ao trabalho e na retomada das aulas. Também é preciso minorar a situação crítica das famílias que não têm como, onde, nem com quem deixar seus filhos na volta ao trabalho. Além disso, o aumento do consumo de drogas e as situações de violência policial só diminuirão com a ampliação dos mecanismos de proteção social e diálogo aberto e franco com as comunidades e suas lideranças, concluem os autores.

Pesquisadores defendem que decisões sobre flexibilização do distanciamento físico devem ser acompanhadas de campanha, de modo a dar segurança na volta ao trabalho e na retomada das aulas; também recomendam atenção para as famílias que não têm onde deixar os filhos quando vão trabalhar – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas. Trabalhando na intersecção das Humanidades com as áreas de Exatas e Biológicas, trata-se de uma rede multidisciplinar e multi-institucional que está em contato com centros de excelência no exterior, como as Universidades de Oxford e Chicago.

A produção do boletim foi coordenada por Graziela Castello, Priscila Vieira e Monise Picanço, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Participaram da elaboração do levantamento os pesquisadores Dafny Almeida, Daniela Costanzo, Jaciane Milanezi e Leonardo Fontes, do Cebrap, Jonatas Mendonça dos Santos, Laura Simões e Rodrigo Brandão, da USP. O boletim pode ser lido na íntegra aqui.

A divulgação dos resultados das atividades será feita semanalmente através de um boletim, elaborado por Glauco Arbix, João Paulo Veiga e Lorena Barberia. São mais de 40 pesquisadores e várias instituições de apoio que sustentam as pesquisas voltadas para acompanhar, comparar e analisar as políticas públicas que o governo federal e os Estados tomam diante da crise. As notas anteriores estão disponíveis neste link.

Publicado no Jornal da USP

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