O perfil e o legado de Celso Furtado

Centenário de Celso Furtado: pensador inseriu o debate sobre desigualdade social na economia. Paraibano de Pombal, economista nasceu em 26 de julho de 1920. Lutou na 2ª Guerra Mundial e depois se tornou um dos maiores especialistas mundiais em América Latina.

Uma alentada matéria de Phelipe Caldas, no Portal G1 do estado da Paraíba, traça um perfil de Celso Furtado e seu profícuo legado. Neste domingo (26), o economista faria vem anos. Veja a íntegra:

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São os últimos meses da 2ª Guerra Mundial na Europa. Início de 1945. Em algum lugar da Toscana, região central da Itália, nas proximidades do Rio Arno, soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) lutam contra o Eixo ao lado de tropas dos Estados Unidos. Entre os brasileiros, está o aspirante a oficial Celso Monteiro Furtado. Um sertanejo de Pombal, na Paraíba, recém-formado pela Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro, que embarcara de navio para o Velho Continente apenas alguns dias depois de sua colação de grau. Jovem, está com 24 anos de idade.

Ele ainda não é o famoso Celso Furtado que se tornaria um dos maiores intelectuais do Século 20 e uma das principais referências mundiais em estudos sobre a América Latina. Ainda não é o consagrado economista que idealizaria a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e que ficaria conhecido globalmente por ser um dos primeiros no mundo a incluir na pauta econômica o debate sobre o combate à desigualdade social. E ainda não é também o respeitado homem público cujo centenário de nascimento é lembrado neste domingo (26) em universidades do Brasil, dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França.

Naqueles rincões da Itália, destruída por quase seis anos de guerra, Celso ainda é um jovem de classe média, vindo de uma família de juristas, cujo pai espera seu retorno ao Brasil para que ele dê início a uma promissora carreira como advogado. Mas dentro de uma barraca militar mal iluminada, enquanto escreve um de seus diários, sua mente passa por uma incrível transformação.

Documento de Celso Furtado em fevereiro de 1943, dois anos antes de ser enviado para a guerra — Foto: Acervo / Rosa Freire d'Aguiar
Documento de Celso Furtado em fevereiro de 1943, dois anos antes de ser enviado para a guerra — Foto: Acervo / Rosa Freire d’Aguiar

De início, escreve sobre os riscos da guerra. Mas de um ponto de vista diferente. Poético também: “A guerra é muito diferente do que se pensa. O heroísmo e a morte em combate só ocorrem por acaso. Morre-se na guerra indiretamente. São as balas perdidas, são os azares de estar sob uma ponte sobre a qual cai uma bomba. São os passos distraídos deflagrando a mina oculta. A guerra é a exacerbação dos perigos correntes da vida”, reflete ele.

Até que, tempos depois, quando já está no navio de volta para casa, por volta de setembro daquele mesmo ano, dá pistas mais concretas de que sua forma de pensar o futuro e a si mesmo foi modificada para sempre:

“Tenho um emprego burocrático e um título de bacharel. Não pretendo advogar nem seguir a magistratura. É este um ponto que de tão assente já não vale a pena discutir. Tenho vontade de ser um escritor. Isto é, tenho vontade de me dedicar ao estudo de certos assuntos – política, administração, ciências sociais – e sobre eles escrever”, pontuou, ao ponderar sobre o que fazer da vida quando retornasse ao Brasil.

A mesma guerra que poderia ter matado Celso Furtado e encerrado precocemente uma vida intelectual que seria brilhante, portanto, foi a guerra que lhe deu os anseios necessários para querer entender melhor a humanidade, os países, as desigualdades. Não tardaria, aquele seria um nome famoso.

Quem ajuda a resgatar essa e outras histórias é a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Celso Furtado, com quem esteve casada entre 1979 e 2004, ano da morte do paraibano. Ela é a organizadora do livro “Diários Intermitentes”, lançado no ano passado pela Companhia da Letras e que reúne os diários de Celso escritos entre 1937 e 2002.

Rosa Freire d'Aguiar, escritora e tradutora — Foto: Rosa Freire d'Aguiar / Arquivo Pessoal
Rosa Freire d’Aguiar, escritora e tradutora — Foto: Rosa Freire d’Aguiar / Arquivo Pessoal

De seu apartamento, em Paris, ela conversou por telefone com a reportagem. E confirma o papel que aquela primeira passagem pela Europa desempenhou em seu futuro como pensador: “A guerra foi o momento em que ele descobriu o caminho que queria dar à própria vida. Foi uma oportunidade de ele conhecer outros países. Cidades como Florença, Roma, Veneza, Nice, Cannes, Paris. Ele estava em combate, mas ao mesmo tempo via tudo com olhos de viajante”, explica.

Dois fatos comprovariam a tese de Rosa. Uma descrição arrebatada que ele faz das obras de Michelangelo, quando em meio à guerra consegue entrar num museu de Florença, e uma viagem de mais de 1.200km que faz de jipe até Paris, já depois do fim do conflito.

“A 2ª Guerra Mundial acaba na Europa em maio, mas Celso Furtado só volta ao Brasil em setembro, porque, com toda a questão de logística, o Exército demora alguns meses até conseguir trazer todo mundo de volta ao país. Então neste meio tempo, o rigor militar, me parece, já não era tão grande. E em dado momento ele consegue três itens muito raros num pós-guerra como aquele: alguns dias de folga, um veículo e combustível. Saem ele e um amigo, num jipe militar, e viajam de Florença até Paris. É a descoberta do mundo para ele”, comenta Rosa, que leu quase 50 diários e aproximadamente 15 mil cartas enviadas e recebidas por Celso Furtado ao longo da vida para organizar suas memórias.

A propósito, um segundo livro, este sobre as correspondências, já está pronto e deve ser publicado em breve, também pela Companhia das Letras.

Em 1945, Celso Furtado e um amigo viajaram 1.200km de jipe para conhecerem Paris — Foto: Reprodução / Google Maps
Em 1945, Celso Furtado e um amigo viajaram 1.200km de jipe para conhecerem Paris — Foto: Reprodução / Google Maps

O começo de tudo

Celso Monteiro Furtado nasceu em 26 de julho de 1920, no município de Pombal, no Sertão da Paraíba, distante 385km da capital João Pessoa, que à época ainda se chamava Parahyba. Aos oito anos de idade, se muda para a capital, para estudar no tradicional Liceu Paraibano, colégio público que ainda hoje existe e que à época era o mais importante do estado.

O Liceu Paraibano foi fundado em 1836 e ainda hoje está em atividade: foi onde Celso Furtado estudou em seus anos na capital paraibana — Foto: Dani Fechine/G1
O Liceu Paraibano foi fundado em 1836 e ainda hoje está em atividade: foi onde Celso Furtado estudou em seus anos na capital paraibana — Foto: Dani Fechine/G1

Permanece na cidade por dez anos. E é um ano antes de se mudar para o Recife, a fim de dar sequência aos estudos secundaristas, que começa a escrever o primeiro de seus diários. “É uma fase muito intensa para ele. E em seu diário tem uma passagem que é muito bonita. Ele diz com 17 anos que o seu desejo é escrever a história da civilização brasileira. É de uma petulância…”, destaca Rosa, aos risos. “Bem, ele não escreveu a história da civilização brasileira, mas escreveu a ‘Formação Econômica do Brasil’”, completa, fazendo referência ao livro mais famoso de Celso, publicado em 1959 e que seria traduzido para nove idiomas.

A passagem por Recife é relativamente curta. Mas, em meio aos estudos na capital pernambucana, consegue servir ao Exército, ficando em dia com suas obrigações militares. De lá vai fazer direito no Rio de Janeiro. Estava no meio do curso quando, em 1942, o Brasil declara guerra ao Eixo, grupo de países formado por Alemanha, Itália e Japão.

Celso tinha idade para ser convocado e sabia que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. Não perde tempo e faz o curso do Corpo de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército Brasileiro, numa rotina puxada entre treinamentos militares e aulas na faculdade. Neste meio tempo, ainda consegue ser aprovado num concurso para o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp).

Entre 1943 e 1945, o Brasil enviou pouco mais de 25 mil soldados para lutar na Itália — Foto: FEB/Divulgação
Entre 1943 e 1945, o Brasil enviou pouco mais de 25 mil soldados para lutar na Itália — Foto: FEB/Divulgação

O esforço acaba recompensado. Porque, quando enfim ele é chamado para ir para a guerra, no fim de 1944, já não é mais um soldado raso, mas sim um aspirante a oficial. Isso não o livrará do front, mas o manterá mais na retaguarda, um pouco distante da linha de frente, onde acontece a maior parte das baixas.

E, devido à boa fluência no inglês, é nomeado Oficial de Ligação, trabalhando na comunicação entre a FEB e os oficiais dos Estados Unidos.

O embarque para a Itália acontece em 8 de fevereiro de 1945. Viaja num navio dos Estados Unidos com outros 6 mil soldados brasileiros. É o quinto e último contingente de tropa que o Brasil enviará para combater na Itália. Mas Hitler se suicida em maio. A Alemanha será derrotada. A guerra para Celso vai durar apenas três meses.

O economista Celso Furtado

Celso Furtado não vai permanecer muito tempo longe da Europa. Quando volta ao Brasil, viaja rapidamente a Pombal, reencontra-se com o seu pai, entrega-lhe o diploma de direito. Parte em seguida em busca de seu próprio destino, decidido a se tornar economista, tal como decidira em seu retorno para casa.

Já em 1946, estará novamente em Paris, onde faz um doutorado em economia na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris-Sorbonne e realiza também estudos na Escola de Economia de Londres, na Inglaterra. É neste período que conhece a química argentina Lucia Tosi, a sua primeira esposa, com quem permanecerá casado até o início da década de 1970 e com quem terá dois filhos, Mario e André Tosi Furtado. Sua ascensão a partir daí vai ser meteórica.

Celso Furtado rapidamente se transformou num nome global, principalmente a partir da década de 1950 — Foto: Arquivo Nacional
Celso Furtado rapidamente se transformou num nome global, principalmente a partir da década de 1950 — Foto: Arquivo Nacional

Doutor, retorna ao Brasil em 1948. Leciona na Fundação Getúlio Vargas. Em 1949, é nomeado diretor da Divisão de Desenvolvimento da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), cuja sede fica em Santiago, no Chile. Ao lado do argentino Raúl Presbisch, começa a construir o que passaria a ser chamada de “teoria do desenvolvimento”.

O professor José Artigas de Godoy, doutor em ciências políticas pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que a “teoria do desenvolvimento” vai substituir o que até então os economistas tratavam apenas como “progresso”.

“O progresso é algo estritamente material, econômico. Mas Celso Furtado não vai pensar apenas em crescimento econômico, porque os fatores econômicos não respondem tudo. Para ele, é necessário colocar nesse debate as questões sociais. Conter as desigualdades sociais”, explica Artigas.

Ainda de acordo com o professor da UFPB, numa época em que os economistas se miravam exclusivamente no Produto Interno Bruto (PIB) dos países, Celso Furtado vai além. “Ele foi o primeiro a entender que o PIB até pode produzir progresso econômico, mas não necessariamente vai produzir igualdade e justiça social”, completa.

É nesta época de Cepal, portanto, que o nome de Celso Furtado passa a se tornar global. Reconhecido como intelectual e como referência para questões da América Latina. Afinal, ainda de acordo com Artigas, Furtado passará a ser um dos expoentes do “desenvolvimentismo”, uma corrente de pensamento político e intelectual que vai propor uma terceira via a um mundo dividido pela Guerra Fria.

“A ideia do desenvolvimentismo busca dirimir contendas. Uma forte crítica às desigualdades sociais do liberalismo. E uma forte crítica ao autoritarismo do comunismo soviético. Então ele e outros intelectuais vão propor meios para a redução das desigualdades, mas preservando as liberdades democráticas”, pontua.

Durante a década de 1950, consolida o seu nome como um dos maiores intelectuais da história brasileira. Passa a se corresponder com pensadores de todo o mundo. A ser convidado para palestras, para participar de publicações e conferências em todo o planeta. Defende, por onde vai, que o desenvolvimento só é possível com a diminuição das distâncias entre os países periféricos e centrais. E que o mesmo deve acontecer internamente em cada um dos países, diminuindo assim as diferenças econômicas entre as regiões.

A teoria e a prática caminham juntas, para ele. No Governo Juscelino Kubitschek, assume o Grupo de Trabalho do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) e trabalha diuturnamente para a criação da Sudene, que acaba fundada em 1959, após mais de um ano de discussões no Congresso Nacional. É o primeiro superintendente da nova entidade. Nomeado por JK, segue na função durante o curto Governo Jânio Quadros e no início da gestão de João Goulart.

Tem trânsito livre nas principais rodas de debate. Dialoga com pessoas tão diversas quanto o presidente John Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, que o recebe na Casa Branca; e Ernesto Che Guevara, líder revolucionário que, em 1961, quando acontece o encontro, ocupava o cargo de ministro da Indústria de Cuba. Pouco a pouco, vai aumentando o círculo de intelectuais e ativistas políticos que o procuram para debates e encontros.

“Celso Furtado nunca foi apenas um intelectual. Era um intelectual político, dialogando com a sociedade, atuando na área técnica e na política”, resume Artigas. “Ele sempre foi um homem muito maduro e lúcido”, completa Rosa Freire d’Aguiar.

Em 1962, torna-se o primeiro ministro do Planejamento do Brasil, cargo que fora criado por Goulart. Mas, dois anos depois, no auge de sua trajetória como homem de ação, como político, como intelectual, ainda ocupando o cargo de ministro, vê o Golpe Militar ter êxito no país, em 31 de março de 1964.

Logo depois, estava cassado. Perdeu o emprego, perdeu os direitos políticos, perdeu tudo. Precisou deixar o país às pressas. Como todo ministro do governo deposto, corria o risco de ser preso.

Com o Golpe de 64, Celso Furtado foi um dos primeiros da lista de cassados pelo novo regime — Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo
Com o Golpe de 64, Celso Furtado foi um dos primeiros da lista de cassados pelo novo regime — Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

Com o Golpe de 64, Celso Furtado foi um dos primeiros da lista de cassados pelo novo regime — Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

O exílio e o que vem depois

É mais uma vez Rosa Freire d’Aguiar, com base em sua pesquisa nos arquivos de Celso Furtado, quem traz à tona este momento da história do paraibano. Celso Furtado deixou o Brasil com destino ao Chile. Chegou a ensinar no país, mas não tardou e migrou para os Estados Unidos. De lá iria para a França, onde se fixou e virou professor da mesma instituição onde realizara o seu doutorado. Mas é uma passagem dos diários de Furtado, no exato primeiro dia dele de Estados Unidos, que Rosa resgata para descrever o que significou o exílio para ele:

“Do que serviu tudo?”, escreve Celso. “É um balanço muito triste, muito amargo que ele faz da vida naquele momento”, emenda Rosa.

Uma vez no exílio, Celso Furtado vai virar professor da Sorbonne e dar aula na instituição por 20 anos consecutivos — Foto: Alecio de Andrade / Formação Econômica do Brasil (Edição Comemorativa) / Companhia das Letras
Uma vez no exílio, Celso Furtado vai virar professor da Sorbonne e dar aula na instituição por 20 anos consecutivos — Foto: Alecio de Andrade / Formação Econômica do Brasil (Edição Comemorativa) / Companhia das Letras

Anos depois, por volta de 1973, uma outra anotação demonstraria que os tempos de melancolia permaneciam. “As coisas saíram pelo avesso. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres ficaram mais pobres. A minha geração pode ser dada como fracassada”, lamenta ele.

É no exílio, contudo, mais para o fim da década de 1970, que Celso Furtado conhece Rosa, que, como jornalista, era à época correspondente na Europa de publicações como IstoÉ e A República. “Foi em Paris que começamos 26 anos de vida em comum”, conta ela.

É também no exílio que Celso Furtado se consolida ainda mais como o grande intelectual da história da Paraíba, um dos principais da história brasileira. Por duas décadas seguidas, lecionará na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris-Sorbonne. Vira colega de nomes como o do filósofo Jean-Paul Sartre. Passa por universidades de renome de Estados Unidos, Inglaterra, Japão. Atua em missões internacionais da ONU. Escreve outros livros importantes de sua carreira, como “Um Projeto para o Brasil”, “Formação Econômica da América Latina”, “O Mito do Desenvolvimento Econômico” e “Criatividade e Dependência na Civilização Industrial”.

Rosa Freire d'Aguiar e Celso Furtado em 1980 — Foto: Acervo / Rosa Freire d'Aguiar
Rosa Freire d’Aguiar e Celso Furtado em 1980 — Foto: Acervo / Rosa Freire d’Aguiar

Mesmo exilado, consegue retornar algumas vezes ao Brasil, sempre em viagens curtas. E só com a Lei da Anistia, de 28 de agosto de 1979, é que recupera os seus direitos políticos, voltando a se reintegrar à vida política brasileira e sendo uma voz ativa na luta pela redemocratização. Ao longo da vida vai manter uma longa correspondência e um longo número de encontros com Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Miguel Arraes, Ulisses Guimarães, Dom Helder Câmara, tantos outros nomes públicos importantes. E no Governo Sarney ocupará o cargo de ministro da Cultura.

Rosa comenta que é mais ou menos depois de sua participação no Governo Sarney, quando inclusive organiza a primeira legislação do país sobre fomento e incentivo fiscal à cultura, que ele resolve se afastar do mundo político. “Ele escreve que já não tinha mais espaço ali. Comenta que já tinha feito tudo o que poderia ser feito pelo Brasil”.

A verdade, contudo, é que ele seguirá na ativa. Porque, nos últimos vinte anos de sua vida, ainda produzirá muito trabalho acadêmico relevante, integrará a Comissão Mundial para a Cultura e o Desenvolvimento da ONU e será eleito em 1997 membro da Academia Brasileira de Letras. Em 2003, é eleito para a Academia Brasileira de Ciências e tem seu nome indicado para o Prêmio Nobel de Economia por economistas da América Latina e por personalidades do mundo inteiro. Não vence.

No ano seguinte, é homenageado pela ONU. O então secretário-geral da entidade, Koffi Annan, destaca a contribuição de Celso Furtado ao pensamento econômico e ao desenvolvimento da humanidade. Em 20 de novembro de 2004, aos 84 anos, morre em seu apartamento no Rio de Janeiro, vítima de parada cardíaca.

Celso Furtado em entrevista à TV Cultura em 1983: voz ativa no processo de reabertura política — Foto: Reprodução / TV Cultura
Celso Furtado em entrevista à TV Cultura em 1983: voz ativa no processo de reabertura política — Foto: Reprodução / TV Cultura

O legado de Celso Furtado

Para o professor José Artigas, da UFPB, não restam dúvidas: “A obra de Celso Furtado é um paradigma fundamental sem o qual ninguém pode entender o Brasil. Sem ler ‘Formação Econômica do Brasil’, por exemplo, a explicação do Brasil é incompleta. O livro é um dos grandes marcos do pensamento contemporâneo brasileiro”.

Ainda de acordo com Artigas, o mais relevante no pensamento de Furtado, que está no cerne de toda a questão, é o ineditismo de se pensar que o subdesenvolvimento não é apenas uma etapa para o desenvolvimento, mas que há condicionantes estruturais que levam ao subdesenvolvimento. “Como todo clássico, a obra de Celso Furtado não é datada. Continua dialogando ainda hoje com o Brasil e com os países periféricos da América Latina”, explica. “É uma teoria formulada nos anos 50, 60, mas que se aparecer nos jornais de hoje ninguém vai perceber que se trata de algo antigo”, prossegue.

Para ele, a questão é que Celso era um humanista que não se fixou no debate exclusivamente econômico. “Ele nunca foi um leitor de planilhas, como são os ortodoxos até hoje. Ele é o primeiro nome heterodoxo da década de 1950. Que vai avançar num debate sobre múltiplas questões que possibilitam pensar a economia”.

“Celso Furtado foi uma usina. Uma profusão de ideias”, completa Artigas.

Artigas, no entanto, reclama do fato de Celso Furtado não ser muito conhecido pelas novas gerações, incluindo aí estudantes de sua terra natal, a Paraíba. “Meus alunos de primeiro ano de universidade, que acabaram de sair do ensino médio, desconhecem completamente a trajetória e o pensamento de Celso”, lamenta.

José Artigas de Godoy, doutor em ciências políticas pela USP e professor da UFPB — Foto: Arquivo Pessoal / José Artigas de Godoy
José Artigas de Godoy, doutor em ciências políticas pela USP e professor da UFPB — Foto: Arquivo Pessoal / José Artigas de Godoy

A professora Maria Luiza Feitosa, do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB e que pesquisa a temática do desenvolvimento, tem pensamento parecido. Ela destaca que Celso Furtado foi uma pessoa “extremamente preocupada com o processo histórico de formação econômica do Brasil” e se diz incomodada com o fato de governos mais recentes não olharem com atenção aos ensinamentos e às reflexões do paraibano.

“Celso Furtado enxergou o desenvolvimento pelo seu inverso, pelo seu contrário, pelo subdesenvolvimento. O subdesenvolvimento mostra como é que o país está e como ele se enxerga no mundo. Isso é muito atual no pensamento de Celso Furtado. O Brasil que gerou a nova previdência, o Brasil que criou a emenda constitucional de controle do investimento público em saúde e educação, o Brasil que gerou uma lei de liberdade econômica para dar qualquer autonomia para o livre mercado, este não é o Brasil pensado por Celso Furtado”.

Ela defende que, tal como Celso Furtado pensava, é importante a presença do Estado na condução da economia. “Quanto mais a gente avança no caminho dessa austeridade perversa que destrói direitos, que destrói o estado, que destrói a democracia, mais a gente se afasta do que preconizou Celso Furtado como sendo o caminho para o desenvolvimento nacional”, pontua.

Por fim, arremata: “Furtado quebra o espelho do próspero. Quebrar o espelho do próspero é você não tentar fazer o mesmo percurso de crescimento dos países ricos. Era importante que a gente se enxergasse na redução da dependência, portanto aumentando internamente a produção nacional, aumentado a produção industrial, aumentando os padrões econômicos dentro de casa. E isso é o que nós não estamos fazendo hoje. A nossa presença na economia mundial está se reduzindo cada vez mais”.

Foi um nome importante de seu tempo, Celso Furtado. Ao mesmo tempo, um homem que não quis fugir de suas origens. É o que conta Rosa, sua companheira nos seus últimos 26 anos de vida:

“A gente ia com muita frequência a Paraíba. Ao menos uma vez a cada um ano e meio mais ou menos e ele estava de volta a sua terra. Às vezes, nos mantínhamos anônimos e ninguém nem mesmo sabia que estávamos lá. Às vezes, ele era reconhecido, e quando isso acontecia as pessoas eram sempre muito cordiais”, conclui.