Renda básica reduz concentração de renda, diz consultor do Senado

Segundo Vinícius Amaral, custos de implantar programa são superestimados. Em entrevista, ele explica a diferença entre renda mínima e renda básica.

O consultor legislativo Vinícius Amaral - Foto: Reprodução/TV Senado

Com a pandemia e a crise econômica, o debate sobre o pagamento de uma renda permanente aos brasileiros está mais forte do que nunca. Argumenta-se que alguns meses de parcelas do auxílio emergencial não serão suficientes para mitigar os impactos da recessão no pós-pandemia.

No entanto, para muitas pessoas, ainda não está claro quais seriam as características de um programa de renda permanente. A quem seria pago o benefício? Por que alguns chamam de renda mínima e outros de renda básica? Por que se fala também em renda básica universal?

Há muita informação envolvida e a confusão é natural. Para tornar o assunto mais acessível, o Vermelho entrevistou Vinícius Amaral, consultor legislativo em Orçamentos do Senado Federal. Especialista em Direito Legislativo e mestrando em Economia no Setor Público, Vinícius atua no assessoramento parlamentar nas áreas de Direito Financeiro e Finanças Públicas. Ele falou sobre a diferença entre renda mínima e renda básica, como seria financiado o programa e outros temas.

Confira a entrevista abaixo:

Renda mínima e renda básica são conceitos distintos. Poderia explicar a diferença?

Os programas de renda mínima visam combater a pobreza, focalizam as pessoas pobres. Para isso, o programa precisa definir quem é pobre, o que não é algo trivial. Nós temos várias linhas de pobreza no Brasil. De acordo com a linha, você vai ter percentuais muito diferentes da população. Já a ideia da renda básica tem um princípio distinto. O princípio de que a riqueza que existe em uma sociedade é uma construção coletiva, fruto do esforço histórico daquela sociedade, tanto das gerações presentes quando das passadas. Assim, é justo que cada pessoa receba uma parcela dessa riqueza na forma de uma renda. A pessoa recebe a renda porque é entendida como legítima detentora de uma fração da riqueza construída coletivamente. Essa proposição filosófica é feita primeiro por Thomas Paine e, ao longo da história, esse conceito vai sendo ajustado, enriquecido, até se chegar ao debate atual sobre renda básica. Por isso, a renda básica é, por definição, universal.

O ex-senador Eduardo Suplicy é conhecido por defender há muitos anos a renda básica de cidadania, aprovada em 2004, e é chamado até de pai da renda básica. Ele costuma dizer que o programa Bolsa Família é o início da implementação da renda básica. Você concorda?

Sem dúvida.Não há dúvida nenhuma de que, se não tivesse existido o Bolsa Família e o programa não tivesse sido o estrondoso sucesso que foi, dificilmente teria existido a discussão sobre renda básica no Brasil. O Bolsa Família rompeu uma série de preconceitos que estão presentes do debate sobre a transferência de renda em geral. Quando a gente acompanha o debate sobre renda básica em outros países, você vê claramente como o fato de não ter tido um debate prévio faz com que a discussão fique presa em questões que já estão superadas no Brasil. Algo que já foi superado é a ideia de que as pessoas, quando recebessem transferência do governo, fossem gastar esse dinheiro de uma forma que seria moralmente incorreta ou de que ao receberem parariam imediatamente de trabalhar. Mais de 15 anos de Bolsa Família mostraram que são questões infundadas.

Mas são preconceitos realmente superados? O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que se pagasse auxílio para sempre as pessoas deixariam de trabalhar …

A gente vê que existe uma fala ainda, mas ela não se traduz em ações concretas de aniquilação do programa. Então, mesmo com um governo de extrema-direita que existe hoje, que poderia resgatar esses preconceitos e eliminar o programa, a gente vê que isso não está acontecendo. Existe uma literatura muito sólida mostrando que esses problemas [previstos] não aconteceram na realidade.

Além do combate à pobreza, quais os benefícios, para a sociedade, de uma renda básica verdadeiramente universal?

Há várias questões em que a renda básica pode contribuir para uma sociedade melhor. Por que, no mundo inteiro, existe um resgate da questão da renda básica? Um dos fatores mais importantes é a questão da desigualdade. Em vários países houve um crescimento estrondoso da desigualdade e a renda básica, como atinge a todos, é capaz de fazer uma redistribuição muito maior da renda na sociedade. Os programas de renda mínima, como são focalizados nos pobres, acabam tendo um impacto pequeno. O próprio fato de ser focado nos pobres acaba fazendo com que os benefícios desses programas tenham, em geral, valores muito baixos. As pessoas pobres têm pouco poder político. Logo, têm pouco poder de pressionar. Quando um programa é formado por parcelas maiores da sociedade, existe a possibilidade, por questões de economia política, de que se pague benefícios maiores. Os 10% mais ricos no Brasil recebem 56% da renda. O 1% mais rico recebe 26%. Com o programa de renda básica, há possibilidade de fazer uma redistribuição.

Essa redistribuição é boa para a própria economia, não é? Existem dados mostrando que o pagamento do auxílio emergencial impediu uma queda ainda maior do PIB.

Sem dúvida, a adoção de é uma renda básica tem a possibilidade de ter impactos muito positivos do ponto de vista econômico. Mesmo que o programa seja fiscalmente neutro, ou seja, você gasta aquilo que você arrecadar a mais, você distribui parte da renda para quem tem uma renda menor e isso tem um impacto na produção. Os próprios empresários, quando vêm que existe aumento do consumo, aumentam a produção e, ao aumentar a produção, aumenta o emprego. O programa de renda básica também ajuda mais os trabalhadores do que o programa de renda mínima.

O programa de renda mínima, como é condicionado à situação financeira, a partir do momento que a pessoa passa a ter uma renda maior perde o direito ao benefício. Acaba sendo um desestímulo para ela se arriscar no mercado de trabalho. A renda básica, como não é retirada, ou seja, a pessoa não perde quando aumenta sua renda, você cria uma camada que protege a todos. Por que isso é importante? Porque vemos, no mercado de trabalho, especialmente nas últimas décadas, que é maior o contingente de trabalhadores que não estão cobertos pelo sistema de seguridade social.

A renda básica também é um estímulo ao empreendedorismo? Se a pessoa quer abrir uma lojinha ou um salão de beleza, por exemplo, sabe que já tem ao menos o mínimo assegurado.

Sem dúvida, esse é outro efeito positivo de um programa de renda básica. Ao prover uma garantia de que a pessoa não vai cair na miséria, de que não vai ficar desprotegida caso não tenha sucesso em seu empreendimento, ela vai se sentir mais estimulada a arriscar.

Por alcançar todos, um programa de renda básica universal não seria pesado demais para os cofres públicos? Quais as alternativas de financiamento?

Essa é, via de regra, a questão central quando se discute a renda básica. Com certeza, o financiamento não é uma questão trivial e dificilmente vai existir uma única fonte. Será preciso fazer uma organização, tanto no aspecto da receita, quanto da despesa. É fundamental que seja feita uma análise do orçamento como um todo para identificar as formas de financiar. É importante que a fonte de financiamento seja progressiva, no sentido de que as contribuições sejam maiores nas rendas mais altas, a fim de que exista esse efeito distributivo do programa.

Mas, em geral, as estimativas que se fazem do custo da renda básica universal são superestimadas. O cálculo não é apenas pegar o número de habitantes de um país e multiplicar por um valor. Um dos aspectos importantes do financiamento da renda básica é uma espécie de autofinanciamento. Claro que exige uma profunda reformulação do sistema tributário, para que possa haver essa suave curva onde, à medida que cresce a renda da pessoa, ela vai financiando seu próprio benefício. Isso produz uma diferença muito grande do custo bruto para o custo líquido dela. Há um artigo de uma pesquisadora de Harvard [Elizaveta Fouksman] que calculou que o custo líquido de implantar uma renda básica seria um sexto do curto bruto. Tudo vai depender do desenho do programa.

A proposta de renda básica debatida no Congresso, por meio da Frente Parlamentar em Defesa da Renda Básica, aparentemente será um programa focalizado. A ideia é atender ao público do Bolsa Família, mais os informais alcançados pelo auxílio emergencial. Será que será possível avançar em direção à renda básica universal no atual momento político?

Acho que a gente tem que pensar de forma distinta o que é o curto e o longo prazo. A curto prazo, de fato, talvez não vá se chegar em uma verdadeira renda básica. Por mais que o Congresso esteja pensando de forma mais arrojada que o Executivo, há limitações, de ordem política especialmente, para que se tenha um programa tão ambicioso. Mas, primeiro, não me parece que a Frente já tenha uma proposta definida. Me parece que esse debate está em aberto e a frente está apenas começando.

A alternativa imediata que muitos pensam é um incremento no Bolsa Família. Uma espécie de expansão. Só que isso não é tão simples, porque um dos motivos de sucesso do Bolsa Família é justamente o baixo valor do benefício. Devido ao valor, há o que se chama de auto-seleção. Só quem tem uma renda muito baixa passa pelo processo seletivo. Quando você aumenta o valor do benefício, aumenta os chamados erros de exclusão e inclusão. O auxílio emergencial é um ótimo exemplo de como é difícil manter esse controle quando o público é ampliado. Essa dificuldade de manter o programa focalizado, quando se amplia, é mais uma justificativa para a universalização.

Eu acho possível [avançar em direção à renda básica universal]. Esse debate ainda está muito no início e as confusões conceituais são muito grandes. Isso é comum no mundo inteiro. Á medida que se iniciam os debates, se começa a entender os prós e contras, os limites de cada programa, eu acredito que é plausível que alguma força política vá encampar uma autêntica renda básica.

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