Mourão blefa sobre desmatamento na Amazônia

“Mourão reconhece que o desmatamento continua em alta e que o governo tardou a agir para contê-lo, o que é óbvio, mas que merece destaque quando se trata de um governo que nega a verdade”

(Foto: Reprodução)

“Só no ano que vem, quando vai passar o satélite de novo, vamos poder comprovar que nossos esforços para reduzir o desmatamento na Amazônia surtiram efeito. Até lá, é conversa de bêbado: eles dizendo uma coisas e nós argumentando outras”.

Essa frase foi pronunciada pelo general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, após a reunião virtual que ele manteve com algumas dezenas de dirigentes de grandes empresas internacionais. Antes de dizê-la, Mourão poderia ter se informado com assessores sobre como é feito o monitoramento do desmatamento por satélite. Assim saberia que, anual, é a taxa de desmatamento produzida pelo sistema Prodes, e não a órbita “do satélite”. E que outro sistema, o Deter, fornece ao governo alertas específicos e regulares sobre a ocorrência de grandes desmatamentos, o que possibilita ações em tempo real.

Essas informações não estão em arquivos herméticos, escondidos em algum lugar. Elas são públicas, acessíveis pela internet, e são oficiais, produzidas pelo INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, vinculado ao Ministério da Ciência e da Tecnologia, estando, portanto, à disposição do governo e do vice-presidente. Para produzi-las, o INPE utiliza dados de vários satélites. Pretendia, inclusive, lançar um satélite próprio, com tecnologia nacional, mas o projeto sofre atraso por falta de atenção do governo.

Os CEOs de grandes empresas, como as que conferenciaram com Mourão, se informam antes de um contato de alto nível, como este se supõe. Eles não conhecem o território físico da Amazônia como o Mourão, que já serviu por lá, mas certamente dispunham das informações do INPE que Mourão prefere ignorar. Não se trata de um simples deslize retórico, mas de displicência no trato do problema que originou o encontro.

Mourão não precisa e nem poderá fazer papel de bêbado durante os próximos 12 meses. De fato, termina no final do mês o período de cobertura da próxima taxa anual (agosto de 2019 a julho de 2020) do Prodes, o que torna impossível reverter, em 15 dias, a tendência de alta configurada nos últimos 11 meses e meio. Mas o mundo todo disporá de informações frequentes sobre a dinâmica do desmatamento e do fogo florestal, na Amazônia e em outros biomas, sendo que o segundo semestre, que começa agora, devido à estiagem na maior parte do país, é sempre mais crítico do que o primeiro.

Mourão reconhece que o desmatamento continua em alta e que o governo tardou a agir para contê-lo, o que é óbvio, mas que merece destaque quando se trata de um governo que nega a verdade. Exemplo disso deu o presidente Jair Bolsonaro ao afirmar, em recente reunião de cúpula do Mercosul, que as críticas ao Brasil pelo aumento do desmatamento e pelo desrespeito aos direitos indígenas “são distorções, que serão esclarecidas” aos europeus, e que espera a conclusão do processo de ratificação do acordo comercial entre os dois blocos (UE-Mercosul) para este semestre.

Mas o vice-presidente se equivoca ao dizer que, a essa altura do ano, não há mais o que fazer em relação ao desmatamento e só resta a opção de focar no combate ao fogo. O desmatamento continua comendo solto, sem prejuízo do aumento dos focos de fogo, que bateram recorde no mês de junho. Se o governo abdica do combate ao desmatamento, que demanda movimentação física de tratores e correntões, além de investimentos, é pouco provável que contenha o fogo, que é quase instantâneo na massa florestal seca e cuja ocorrência se pode atribuir a acidentes ou a ações de terceiros.

São meias verdades as alegações do Mourão de que faltam recursos e pessoal para o combate ao desmatamento na Amazônia. Segundo ele, as operações, tipo GLOs, que ele vem coordenando desde maio, estão sendo totalmente custeadas pelo orçamento do Exército. E também reconhece que os 300 fiscais de que o Ibama dispõe para fiscalizar o país inteiro são insuficientes para coibir o desmatamento numa região imensa como a Amazônia. Não se duvida que recursos e quadros sejam insuficientes, ainda mais quando o próprio governo estimula os desmatadores ilegais.

Só que antes de Mourão assumir, por assim dizer, o comando do combate ao desmatamento, dois coordenadores de operações de fiscalização do Ibama haviam sido sumariamente demitidos enquanto estavam em campo, por ordem do próprio presidente, atendendo pressões dos predadores e dos seus representantes políticos. Garimpeiros, madeireiros e grileiros de terras festejaram as intervenções do presidente. Assim, também não é exata a afirmação do Mourão de que o combate ao desmatamento “começou tarde” neste ano, somente a partir de quando ele assumiu essa responsabilidade. Na verdade, ele começou mal, com vigorosos estímulos presidenciais aos desmatadores em ação.

O Conselho Nacional da Amazônia, transferido para a vice-presidência e para a coordenação do Mourão, não é um órgão executivo e dispõe de um orçamento ridículo. Mas não chega a ser estranho que o orçamento do Exército, que assumiu o comando das operações de fiscalização na Amazônia no lugar do Ibama (GLOs), arque com os custos decorrentes, que têm sido muito maiores do que os das operações do Ibama e considerando que o Ministério da Defesa foi o único que teve aumento de orçamento em 2020.

O problema maior está na concepção de fiscalização do Mourão. Apesar da insuficiência de quadros, as operações do Ibama eram orientadas por um serviço de inteligência, visando atingir as cadeias das ilegalidades e não apenas os seus operadores na ponta. Não há dúvida de que a contribuição do Exército é necessária a um plano consistente de proteção da Amazônia, mas ela não deve substituir ou subordinar a ação dos órgãos federais e estaduais especializados. As operações GLOs, além de mais caras, são mais lentas, menos dotadas da retaguarda da inteligência, da preservação do sigilo e de condições de eficácia.

Mourão não quis se comprometer com uma meta de redução do desmatamento na Amazônia, embora o Brasil tenha metas assumidas no âmbito do Acordo de Paris, ratificadas pelo Congresso Nacional, sendo, portanto, legais. No passado, dispondo de políticas de combate ao desmatamento mais consistentes, o Brasil assumiu e cumpriu metas, promovendo grande redução no desmatamento entre 2006 e 2012. Mas Mourão sinalizou, apenas, um compromisso de reduções não especificadas “a cada semestre, até o final de 2022”, quando termina o atual mandato presidencial. A primeira meta brasileira de redução de emissões, para 2020, deixará de ser cumprida –  apesar da depressão econômica – em consequência do aumento do desmatamento.

A ministra da Agricultura, Teresa Cristina, também participou da audiência virtual combos CEOs. Ela defendeu a “regularização fundiária” como solução para o controle do desmatamento. Essa regularização consiste em legalizar ocupações ilegais de terras públicas, em lotes de até 2.500 hectares, em favor de empresas ou pessoas físicas. Porém, a grilagem de terras públicas é o principal fator de expansão predatória da fronteira agropecuária, associada à abertura de estradas e de outras obras de infraestrutura. O governo editou uma medida provisória para acelerar a legalização da grilagem isentando-o de vistorias locais, mas, após fortes pressões da sociedade, essa medida caducou. Mesmo assim, a ministra falou que o governo pretende intensificar esse processo, sem apresentar um único exemplo de área titulada em que tenha havido redução do desmatamento.

Quando indagado pelos CEOs sobre a presença de invasores em Terras Indígenas, não obstante a ameaça aos povos indígenas diante da pandemia, Mourão minimizou os predadores como vetores de contaminação. Ignorando informações detalhadas sobre a coincidência entre os principais focos de garimpo e de contaminação no território Yanomami, que foram dadas nas suas mãos, dias antes, por Dário Kopenawa, Mourão afirmou que as contaminações ocorrem porque os índios estão “integrados” e frequentam cidades para receber benefícios sociais e fazer compras. Mas não explicou porque o governo não descentralizou o pagamento dos benefícios sociais para evitar deslocamentos desnecessários e filas nas agências da Caixa Econômica Federal.

A “solução” que o vice-presidente aponta para a situação dos Yanomami é, mais uma vez, a legalização da atividade garimpeira, através da aprovação de um projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso, propondo a legalização de vários tipos de atividades predatórias por parte de não índios em Terras Indígenas. Porém, devido ao seu alto potencial de danos socioambiental e à oposição do movimento indígena, a sua tramitação foi sustada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Mourão não explica porquê a mera legalização de atividades predatórias reduziria o desmatamento ou o impacto sobre povos indígenas.

Outra coisa que Mourão não conseguiu explicar é porque o governo se recusa a instituir um plano específico de combate à epidemia para os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. A letalidade da epidemia entre esses grupos chega a ser o dobro da média da população brasileira, mas o presidente desfigurou, através de 16 vetos, uma lei com esse objetivo aprovada pelo Congresso e, agora, está obrigado a cumprir uma liminar do STF, Supremo Tribunal Federal, no mesmo sentido. Tudo isso está nos jornais, de tudo isso os CEOs também sabem.

O toque de surrealismo mais agudo ficou por conta do ministro das Comunicações, Fábio Faria, que também participou da vídeo-conferência com os CEOs e, ao final, declarou o seguinte em coletiva de imprensa: “Se você chegar em Manaus e pousar, e se você quiser pedir um avião: ‘Ah, eu quero aqui ver a Mata Atlântica’. Você fica ali três horas sem parar vendo Mata Atlântica atrás de Mata Atlântica”. Faria ainda acrescentou que 87% da Floresta Amazônica é formada por Mata Atlântica e os outros 13% seriam queimadas (!?).

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também participou do evento, mas, desgastado por sucessivas denúncias e acusações, se limitou a dizer que encaminhará ao presidente, nesta semana, uma minuta de decreto para proibir queimadas nos próximos quatro meses. Ele não tem credibilidade para permanecer no cargo, principalmente após a publicação da sua fala, em uma reunião ministerial, sugerindo que o governo se aproveitasse de que as atenções da imprensa estão voltadas para a pandemia para “passar uma boiada” de revogações de normas que protegem o meio ambiente. Mas, pelo menos, ele sabe que a Mata Atlântica é outro bioma e que há mais satélites em órbita do que Mourão imagina.

Até dá para entender que empresários, ambientalistas ou índios procurem Mourão para tratar de questões urgentes, como o desmatamento e a invasão de Terras Indígenas, que dependem de ações do governo federal. Buscam um canal que não encontram no próprio presidente, o que o vice deveria valorizar. Mais difícil é entender porque ele não se prepara adequadamente para esses encontros, não se apropria das informações e experiências que existem no próprio estado para encarar os problemas, sem subestimar a inteligência e o grau de informação dos seus interlocutores.

A impressão que fica é a de que Mourão está blefado. Que ignora, de forma deliberada, tudo o que já se fez, com sucesso, para reduzir o desmatamento, como quem precisa começar do zero, correndo atrás do prejuízo acumulado nos últimos 18 meses. Dissimulação e ignorância são a pior receita para a proteção da Amazônia. Não resolvem os reais problemas e só podem piorar, ainda mais, a combalida imagem do país no mundo civilizado.

Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.

Artigo publicado no Mídia Ninja

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