O bolsonarismo em crise: a ilusão dos 30%

Análise de 127 pesquisas desde o início do governo mostra queda contínua da popularidade e redução no terço do eleitorado incondicional do presidente

Pesquisas que medem a popularidade do presidente têm se tornado muito frequentes no Brasil. Um levantamento abrangente – porém certamente incompleto – de fontes públicas indica que até 2014 não alcançávamos mais do que duas pesquisas divulgadas por mês em anos sem eleições presidenciais. Essa frequência subiu um pouco entre 2014 e 2018 e disparou nos últimos dois anos.

No ano passado, por exemplo, registramos uma média mensal de seis pesquisas, e nos primeiros seis meses de 2020 foram mais de nove. Mesmo se excluirmos a Ideia Big Data – empresa que vem realizando e divulgando pesquisas semanalmente nos dois últimos anos –, encontramos médias mensais de três e cinco respectivamente, muito acima do que tínhamos antes. Pesquisas, ao que parece, são um novo passatempo nacional.

Quando falamos em popularidade do presidente, geralmente temos em mente a proporção dos eleitores (ou potenciais eleitores) que avaliam a gestão presidencial positivamente (como boa ou ótima). Pesquisas de opinião buscam estimar esse valor através da obtenção e análise de uma amostra dos adultos brasileiros. A natureza probabilística dessa empreitada é tal que sempre há incerteza associada a qualquer estimativa. Ainda que a mesma pesquisa fosse realizada no mesmo dia e seguindo o mesmo método, haveria variação entre as estimativas obtidas a partir das diferentes amostras.

Além dessa variação que é inerente a qualquer pesquisa de opinião, há também variações entre as empresas (e, às vezes, entre pesquisas da mesma empresa) na forma pela qual as amostras são desenhadas e obtidas. Por conta dessa heterogeneidade toda, não é trivial tirarmos conclusões acerca de níveis e tendências da popularidade do presidente.

Para tentarmos enxergar o contexto mais amplo e evitarmos ficar refém de um único (e por vezes idiossincrático) instituto de pesquisa, um caminho pode ser o de agregar diferentes pesquisas. Como exercício ilustrativo, tomamos 127 pesquisas de avaliação do desempenho do presidente Jair Bolsonaro à frente do governo, divulgadas por dez empresas diferentes, realizadas entre 10 de janeiro de 2019 e 9 de julho de 2020.

Há inúmeras maneiras possíveis de agregar essas estimativas. Aqui implementamos duas. A primeira, facilmente compreensível, consiste em calcular uma simples média de todas as pesquisas realizadas em cada mês/calendário. A agregação mensal é arbitrária, mas dado o grande número de pesquisas realizadas no período em questão, permite gerar uma estimativa para cada mês desde a posse. Temos uma média de pouco mais de seis pesquisas por mês, com um mínimo de duas (no corrente mês de julho que se encontra ainda na metade) e um máximo de 16 (registrado em abril de 2020).

Nessa agregação, somos agnósticos sobre a qualidade de cada pesquisa. Não realizamos nenhuma ponderação por tamanho da amostra ou método empregado – e passamos ao largo de interessantes discussões metodológicas que estão sendo travadas entre partidários de diferentes modelos de pesquisa. Nesse sentido, a nossa média é obviamente influenciada pelo número de pesquisas divulgada por cada empresa. Uma empresa com mais pesquisas num dado mês será implicitamente mais influente.

Uma segunda agregação, mais sofisticada, consiste em empregar um algoritmo conhecido como razão diádica (dyads-ratio algorithm, o DRA), desenvolvido por James Stimson (Universidade da Carolina do Norte) para o estudo da opinião pública estadunidense. O DRA assume que a verdadeira proporção de pessoas avaliando positivamente o presidente é uma quantidade “latente”, isto é, não pode ser observada diretamente. As pesquisas realizadas por cada empresa são tratadas como uma série. Cada série é uma fotografia imprecisa da quantidade latente, e inclui seus próprios vieses.

O algoritmo implementa uma imputação de valores faltantes, suaviza as variações ao longo do tempo e usa associação observada entre as diferentes séries para estimar os valores do que seria a popularidade latente em cada período de interesse (para simetria com o método anterior, estipulamos uma agregação mensal). A estimativa da popularidade latente é particularmente adequada para avaliar a variação da popularidade, mas num caso como o nosso, no qual todas as séries se propõem a estimar a mesma quantidade na população, ela pode também ser um indicativo razoável sobre o nível real da popularidade.

Ambas agregações, cabe ressaltar, incluem os dados de todas os institutos disponíveis, mesmo que suas estimativas sejam parcialmente discrepantes dos demais.

Na figura, cada ponto corresponde ao percentual de avaliações positivas do desempenho do presidente Bolsonaro em uma pesquisa diferente. A linha cinza é a agregação através das médias mensais, e a linha mais escura é a estimativa de popularidade latente.

Em que pese a diferença de métodos de agregação, a trajetória é extremamente semelhante. Vemos uma queda fortíssima nos primeiros meses de governo, seguido de um período de certa estabilidade com levíssima recuperação que durou até o início de 2020. Essa estabilidade deu origem à ideia de que o presidente conta com apoio sólido de cerca de um terço do eleitorado.

Mas apesar de um ou outro resultado desviante, como as recentes pesquisas do Datafolha realizadas por telefone, a trajetória agregada indica que desde fevereiro de 2020 houve uma queda bastante pronunciada. A única dúvida é se essa queda continua, já que a estimativa da popularidade latente indica alguma estabilidade nos últimos três meses, enquanto que essa estabilidade ainda não é visível na agregação via médias. A ideia do terço resiliente continua sendo propalada apesar da evidência sugerir que não passa de uma ilusão.

O terço simpático a Bolsonaro foi interpretado como sólido por conta da estabilidade da popularidade em face dos quase diários conflitos e das notícias negativas nos campos institucionais, educacionais, ambientais e – por que não? – policiais. Depois que o seu estilo beligerante de ser e do caótico funcionamento do governo levaram àquela acelerada queda inicial, a manutenção da popularidade demandava explicações. 

No entanto, é importante reconhecer que a trajetória de popularidade do presidente é bastante compatível com o desempenho econômico observado no período. O ano de 2019 foi de certa estabilidade, com o crescimento do PIB de 0,2% no primeiro trimestre, seguido de dois trimestres com crescimento de 0,5%, e fechando o ano em 0,4%.

Tivemos, em termos coloquiais, uma economia que andou de lado. Houve um tênue alívio da crise para parte da população, e havia ainda a expectativa de uma retomada econômica, que acabou sendo frustrada antes mesmo da pandemia. Não chega a ser surpreendente, nesse contexto, que a popularidade do presidente tenha permanecido estável em níveis relativamente baixos para um primeiro ano de mandato. 

No primeiro trimestre de 2020, no entanto, houve uma forte retração da atividade econômica, com queda de 1,5% do PIB e um colapso ainda maior no consumo das famílias (-2,0%). Podemos invocar, novamente, fatores conjunturais, como as polêmicas sobre a pandemia, a intensificação da crise sanitária, a queda do então ministro Sergio Moro e talvez até a prisão de Fabrício Queiroz.

É provável que todos este fatores tenham dado a sua contribuição para  a queda na popularidade do presidente, mas tal queda já seria o resultado esperado de uma crise econômica com a magnitude da que vivemos hoje.  Nesse contexto, a gigantesca (e necessária) transferência direta de renda via auxílio emergencial pode até ter amenizado o impacto da crise, mas seria muito improvável que a popularidade do presidente seguisse incólume.

Independentemente de suas causas, a análise agregada das pesquisas indica que o “chão” de um terço de apoio já cedeu há alguns meses e vários fatores sugerem que esse pode ser o “novo normal” do futuro próximo. A crise econômica durará mais algum tempo, mesmo na melhor das hipóteses. O auxílio emergencial é um fator apenas temporário. Os acontecimentos políticos imprevistos têm sido, até hoje, praticamente todos negativos e, apesar de o presidente estar numa fase “silenciosa”, nada nos faria crer que passassem a ser majoritariamente positivos daqui para a frente.

Assim, apenas uma recuperação econômica forte a médio prazo levará a popularidade a um patamar mais alto. A continuidade da crise, por outro lado, poderá fazer o apoio atual minguar mais ainda. O terço sólido era um mito. Na realidade, o chão pode ser bem mais embaixo. E os proponentes do movimento #somos70% podem atualizar seu nome para #somos75%.

Publicado originalmente na Piauí

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