Futebol e violência contra a mulher durante a pandemia

A violência contra a mulher se revela nos gestos, mas também em discursos de normalização como o do técnico Renê Simões

Camille Cristina, mestranda em História pela UERJ/FFP, e Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ   

Reproduzido dos Jornalistas Livres

Na semana passada, o técnico Renê Simões defendeu o retorno dos jogos de futebol durante a pandemia. O motivo: seria uma forma de acalmar os ânimos dos homens que agridem suas mulheres em casa, diante do estresse causado pelo confinamento. Uma declaração repulsiva, vinda de um ex-treinador da Seleção feminina de futebol. Traz à tona uma realidade incômoda, recorrente no contexto brasileiro: não só o retorno do jogo em plena pandemia de Covid e ascendência de mortes, mas o machismo e a violência contra a mulher no mundo da bola.

Também na semana passada voltou à cena uma das figuras mais representativas da violência contra a mulher associada ao futebol: trata-se de Bruno, ex-goleiro do Flamengo, preso pela participação no assassinato brutal de uma mulher, mãe de um filho seu. Foi noticiado que ele seria usado como “garoto propaganda” de um canil, demonstrando altíssimo grau de violência simbólica contra as mulheres. Ele protagonizou o assassinato e ocultação de cadáver de Eliza Samúdio que, segundo as investigações, teve parte de seu corpo entregue a cachorros como forma de sumir e eliminar evidências de crime.

Além de conviver com a liberdade de Bruno, as mulheres teriam de vê-lo usando sua imagem (ainda com as marcas do ídolo de futebol) para fazer a propaganda de um canil. Um gesto cruel, dura e prontamente atacado por mulheres na internet, que tiveram de se mobilizar para de defender o óbvio, o mínimo, isto é, o impedimento do escárnio contra o corpo da mulher.  

Futebol em tempos de Covid  

Há algumas semanas acompanhamos o movimento de torcidas organizadas nas ruas, com objetivo de se contrapor à escalada fascista e antidemocrática imposta pela extrema direita no país. A defesa da democracia faz parte da história de grandes torcidas desde o contexto da Ditadura Militar. O movimento da Democracia Corintiana, sob a liderança de Sócrates, ganhou destaque nacional no início da década de 80, levando para campo a pauta das eleições diretas para presidente da República e a intensificação democrática na gestão do clube, trazendo os jogadores para o centro das decisões internas.  

O futebol mostrou, nestes casos, seu grande potencial mobilizador de importantes causas nacionais. Na última semana, em meio à pandemia de coronavírus, o futebol profissional masculino voltou ao centro do debate. Em primeiro lugar, pela volta do Campeonato Carioca mesmo com o crescimento das mortes no Rio de Janeiro. Durante o jogo do Flamengo no Maracanã, a maior derrota veio no hospital de campanha instalado a alguns metros do campo de jogo: duas mortes por covid-19.

O prefeito Marcelo Crivella já anunciou a abertura do futebol ao público a partir de 10 de julho, na direção contrária de vários campeonatos realizados na Europa, em países que revelam diminuição de casos e mortes por coronavirus. Na retórica de Crivella e das direções dos clubes que o apoiam, o objetivo é entreter a sociedade carioca e esquecer o vírus; na prática, esta medida cria uma falsa impressão de que “está tudo normal”, trazendo a normalização das mortes para o cotidiano.  

Cultura do machismo e violência contra a mulher na pandemia 

Acompanhamos nos últimos anos o crescimento do interesse do público (feminino e masculino) pelo futebol feminino, sobretudo pela Seleção feminina de futebol. A grande imprensa tem sido bem receptiva a essas pautas, tematizando a diferença salarial e a reprodução do machismo em meio à cultura futebolística e esportiva. O programa Globo Esporte, por exemplo, promoveu uma série de reportagens neste ano sobre a cobertura da imprensa no esporte feminino. Ou seja, revelou o quanto a igualdade de gênero não é uma realidade e caminha a passos lentos; ao mesmo tempo, desnaturalizou a questão, mostrando a urgência e necessidade de avanço.

A fala de Renê Simões, portanto, se insere em um contexto de acomodação discursiva de reprodução e normalização do machismo. Nas palavras de Simões, em entrevista à Rádio Central, de Campinas, na última sexta-feira dia 26: “Vamos discutir o futebol como fator social para ajudar as pessoas que estão em casa enlouquecendo. Eu tenho amigos aqui que já se separaram, outros já bateram na mulher, outros batem nos filhos. Estão enlouquecendo. Então, se colocar futebol, pode ser que ajude em alguma coisa.”

Estamos falando de um contexto marcado pelo aumento da violência contra a mulher. Já em março, no início da pandemia, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro registrou o aumento de 50% das denúncias de violência doméstica. Um número que, apesar de assustador, infelizmente sabemos que não é o real, pois muitas mulheres, por inúmeros motivos, não fazem a denúncia.Na fala de Renê Simões a normalização do machismo se faz presente de diversas formas. Em primeiro lugar, considera que o contexto “enlouquecedor” da quarentena criaria uma condição de estresse capaz de justificar a violência contra a mulher. O futebol – e não importa se em tempos de pandemia há exposição da saúde dos atletas nos treinos e jogos – serviria como uma espécie de “circo”, espetáculo, capaz de entreter e “acalmar” ânimos violentos. Como se o público consumidor do futebol fosse só de homens, algo que contraria o crescimento do esporte entre mulheres, que jogam e assistem. Reforça a máxima do “futebol é coisa de homem”, algo ainda mais grave quando proferido por um ex-treinador da Seleção feminina de futebol. Por fim, ele fala de amigos que já separaram, outros bateram… O grau de naturalização da violência é tamanho que ele fala de crimes cometidos por amigos como se isto fosse normal – pessoas próximas, com quem ele tem relação afetiva. Aliás, se ele soube de agressão a mulheres neste contexto de pandemia, por que não denunciou à polícia? Ou será que ele trabalha com a lógica machista de que em “em briga de marido e mulher não se mete a colher”?

Em suma, a violência contra a mulher se revela nos gestos, mas também em discursos de normalização como o de Renê: “Vamos colocar homens correndo atrás de uma bola, para que outros homens assistam e parem de bater em suas mulheres por causa do estresse da quarentena”. Uma atitude que ainda é muito presente, infelizmente, na cultura futebolística brasileira.