Em defesa dos facilitadores: crônica de uma morte programada

Sob o discurso da autonomia e do espírito empreendedor, as empresas de aplicativos disfarçam a relação óbvia de subordinação dos entregadores, tratados como ‘parceiros’.

Ilustração: Aroeira

Olá, me chamo Facilitators Corp., que na verdade é o meu nome enquanto pessoa jurídica. Prefiro me apresentar assim para não cometer a injustiça de desconsiderar as várias pessoas que contribuem para esse sonho. Isso seria antiético e não condiz com nossos valores. Bem, por enquanto sou somente um projeto, mas bem ambicioso: constituir uma holding, isto é, uma empresa que controla diversos negócios nas mais variadas atividades. Nosso empreendimento está todo construído em cima da noção de conectividade, em que viabilizamos o encontro das vontades e fazemos acontecer!

Trabalhamos junto aos nossos parceiros, auxiliando-os na oferta de seus serviços e, na outra ponta, fomentamos o cliente final, aquele que vai fazer uso do serviço. Espero que não tenha ficado confuso. Talvez alguns exemplos ajudem-nos a entender o nosso negócio de facilitadores. Vou compartilhar com vocês, diretamente, as duas principais iniciativas que estamos trabalhando. Espero que gostem e nos avaliem bem!

No ramo da estética pessoal, vamos constituir uma marca forte de salão de beleza, sob a bandeira da diversidade humana, gerando emprego, renda e satisfação de nossos parceiros. Falando neles, os parceiros, trata-se de profissionais de serviços pessoais diversos, tais como cabeleireiro, manicure e maquiadores, para citar os principais.

O problema para esses parceiros é, muitas vezes, a dificuldade em bancar o aluguel de um salão e manter uma carteira de clientes dinâmica. Identificamos essa carência do mercado e fornecemos a solução: vamos oferecer um espaço atraente, sofisticado e com toda infraestrutura necessária para os serviços de salão de beleza; ao mesmo tempo, canalizamos a demanda por nosso app para cada parceiro que quiser trabalhar conosco.

Alguns detalhes do business model, ou modelo de negócio, são importantes para entender como todos podem sair ganhando juntos. Cobraremos uma taxa de uso do salão – e das ferramentas de trabalho – dos nossos parceiros, de acordo com alguns parâmetros do nosso modelo de precificação (pricing), como o tempo de uso e a quantidade de serviços realizados. Isso permitirá a sustentabilidade do empreendimento, ao mesmo tempo em que oferece a vantagem da flexibilidade para os parceiros, que não precisarão ficar “presos” no contrato de aluguel. Para integrar o sistema, nosso aplicativo será responsável por determinar os preços dos serviços de acordo com a localização, horário de atendimento e a qualificação do profissional, o que pode evitar certos, digamos assim, abusos do preço cobrado por nossos parceiros.

Do ponto de vista do consumidor, não basta transparência nos preços, é preciso ter mais informação sobre a qualidade do serviço e o nível de atendimento de cada profissional. Para isso, contaremos com nosso sistema de review chamado “avaliação boca a boca”, em que cada cliente poderá deixar uma nota e um comentário sobre o profissional. Incrível, não? Conectando a oferta e a demanda, definindo de maneira ótima os preços, com um modelo de avaliação do serviço justo, somos capazes de entregar o melhor para todos!

Vocês podem estar pensando: mas o que há de novo nisso?! A novidade é a massificação do esquema de ofertantes individuais em salões compartilhados, sob a regência do algoritmo maximizador e da nossa marca de confiança! Assim, podemos evitar várias descontinuidades frequentes nesse tipo de atividade econômica, como, por exemplo, a falta de profissionais ofertantes ou a intermitência da demanda final. O Brasil é um espaço privilegiado para esse modelo de negócios, pois possui uma economia abençoada com abundância de força de parceiros disposta a entregar o seu melhor a cada dia, a um preço justo correspondente. Portanto, na massificação algorítmica conseguimos manter oferta e demanda ininterrupta nos serviços pessoais, gerando renda para nossos parceiros e satisfação para os clientes finais.

Construção civil

O segundo case é o Bricklayer Bate-laje, no setor de Construção Civil. Aqui, nossos parceiros são os pedreiros e serventes, basicamente. Nossos clientes finais são as pessoas que estão construindo ou reformando suas casas e congêneres, que podem usar nosso aplicativo facilitador diretamente ou por meio de engenheiros civis, mestres de obras ou arquitetos. Novamente, identificamos aqui outra vantagem comparativa da economia brasileira que dispõe de um enorme contingente de força de parceiros no ramo da construção civil.

Em São Paulo, por exemplo, não é de hoje que milhões de nordestinos migraram para construir essa cidade. Logo, aproveitando essa força histórica, nosso negócio busca dinamizar o mercado de construção, gerando emprego, renda e satisfação!

De forma sintética, oferecemos para nossos parceiros todas as ferramentas necessárias para o trabalho, tais como colher de pedreiro, desempenadeira, trena, esquadro, régua de alumínio, prumo, carrinho de mão, entre outros. E, também, o que é nossa competência essencial, conectamos os parceiros com a demanda por serviços. Em troca, cobramos uma taxa de acordo com a precificação do algoritmo, que leva em conta o tempo de uso das ferramentas e o tempo do serviço.

Lembramos que todos os orçamentos são calculados e disponibilizados pelo nosso app, o que garante padronização e transparência para o cliente. Novamente, o sistema de avaliações disponível em nosso aplicativo é fundamental para termos sempre por perto os melhores parceiros e, assim, desconectamos aqueles que não se adequarem ao padrão Facilitators Corp.

Permita-me esclarecer algo sobre nossos parceiros. Trata-se de profissionais autônomos, ou liberais, com espírito empreendedor e que estão cansados de trabalhar para os outros e não ter flexibilidade sobre suas jornadas de trabalho. No tempo em que vivemos, não há nada mais importante do que poder decidir quando e onde trabalhar, e nisso estamos de acordo com nossos parceiros. Está óbvio, então, que não são nossos empregados ou funcionários. Na verdade, esse tipo de relação já não corresponde ao século 21, tempos em que devemos superar as estruturas rígidas do passado e o desperdício de tempo dos trabalhadores.

O Brasil já é grandinho o suficiente para superar a tutela do Estado em dizer o que deve ser feito ou não em matéria de trabalho e emprego. Essa tutela prejudica o livre encontro das vontades e inviabiliza os negócios, levando a economia para o caos. Assim, nos colocamos lado a lado desses profissionais, justamente o que caracteriza uma relação de parceria. Para que os nossos negócios sejam sustentáveis, precisamos que todos os parceiros ganhem. E vice-versa, ou seja, uma relação simbiótica.

Greve dos entregadores por aplicativos no dia 1º de julho

Como já deve ter ficado claro (espero!), essa crônica tem como eixo condutor o tom irônico-trágico entre o discurso cínico do empreendedorismo e a exploração dos trabalhadores. A maior ironia é exatamente a maior tragédia: ao mesmo tempo em que esse discurso fantasioso pode gerar algum incômodo no leitor – “como assim parceiros? Nossa, não parece certo!” – ele se faz tão verossímil ao ponto de sabermos que é perfeitamente possível que negócios como esses possam prosperar.

E, na verdade, prosperam, como no caso dos aplicativos de entrega. Os trabalhadores são tratados como parceiros para que não haja “confusão” legal possível que obrigue as empresas a reconhecerem algum tipo de responsabilidade para com eles. Sob o discurso da autonomia e do espírito empreendedor, essas empresas disfarçam a relação óbvia de subordinação dos entregadores.

Não há autonomia na lógica do algoritmo. O motoboy (ou bikeboy) não faz entregas durante 10, 12 ou 14 horas por dia por prazer, mas porque o pagamento por corrida é muito pouco ou quase nada. Ele não tem nenhum poder de escolha sobre os preços das corridas, sobre o bônus ou o preço dinâmico. A única alternativa que lhe cabe é se adaptar, por meio do aprendizado prático, traçando estratégias precárias de sobrevivência diante do todo poderoso aplicativo.

A tragédia programada se apresenta diante do trabalhador como algo mais inacessível do que seria um patrão, encarregado, supervisor ou gerente. A relação é virtualmente despótica, fantasiada de reino da liberdade. Não há liberdade de escolha onde as possibilidades não são concretas. De repente, no meio de um dia de trabalho, o entregador é “bloqueado” pelo aplicativo, em uma espécie de despedida temporária sem apresentação da justificativa.

Então, o trabalhador, consternado, migra para outro aplicativo de entregas, mesmo que o preço da corrida e a demanda sejam piores. Essa dinâmica de múltiplas submissões virtuais em que o motoboy faz entrega para diversas empresas no mesmo dia, semana ou mês, representa menos qualquer sorte de liberdade de escolha para quem servir, e, muito mais, o aumento da instabilidade, do estresse e da precariedade em torno da jornada e da renda do trabalhador.

Você, que faz uso dos aplicativos de entrega, não deveria dormir tranquilo enquanto esses trabalhadores não tiverem condições de trabalho adequadas. Serem tratados gentilmente a cada entrega é importante, no sentido mínimo de humanidade, mas não basta. Lamentar junto a eles a precariedade de seu trabalho e desejar cuidado e força é um passo em direção à solidariedade, mas é muito pouco. Doar gorjeta pelo aplicativo ou em dinheiro ajuda, mas não resolve. Boicote coletivo e poder do consumidor consciente é ameaçador para as empresas de aplicativo, porém dificilmente tomará proporções significativas.

Somente na capital paulista, em 2018, morreu um motociclista por dia, em média.

Esses trabalhadores precisam do apoio de todos os cidadãos com um mínimo de consciência social para conseguir o mínimo daquilo que não lhes é oferecido: melhores condições de trabalho (álcool em gel e máscaras), aumento dos pagamentos das entregas, renda mínima por trabalhador, seguro de vida, fim de bloqueios e desligamentos arbitrários e extinção do sistema de pontuação. Isso é o mínimo, pois enquanto a exclusão do sistema de proteção social permanecer, a categoria profissional vai lutar por seus direitos. Diante da tragédia de uma morte física virtualmente programada, somente a luta organizada pode prosperar.

Fonte: Brasil Debate

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