Quem vai entregar um pouco de futuro aos entregadores?

Greve anunciada para esta quarta (1º) tem cheiro, cor e gosto de século 21

Todo ciclista é um otimista. Se é ciclista no Brasil, então, ainda mais. Só otimistas saem de casa nas cidades brasileiras e esperam chegar inteiros no fim do dia. Só os otimistas sabem que a cidade pode ser atravessada sem motor e sem poluição. No fundo, todos ciclistas somos otimistas e humanistas. Entendemos a proporção humana das coisas. É por isso que esta quarta-feira (1º) é importante. Este evento tem a proporção humana.

Para quem não sabe, para este 1º de julho está marcada a primeira grande greve dos entregadores de aplicativos. É greve com cheiro, cor e gosto de século 21. O Brasil dos anos 1970 e 1980 se lembra bem das grandes paralisações. A dos metalúrgicos do ABC, as gerais de 1989 e 1996 e, mais recentemente, a dos caminhoneiros que deixou o governo do presidente Michel Temer (MDB) de joelhos. A nova greve não pertence à Revolução Industrial, é reação às regras das startups do Vale do Silício.

Vivemos a pandemia de olho nas janelas de nossas casas e do celular. Em nossas bolhas, dizemos que somos salvos pelos aplicativos. Quem consegue fazer quarentena depende de entregas de supermercado, de restaurante, de farmácia. O aplicativo salva. Nananinanão! Quem salva é uma pessoa, que toca o interfone do apartamento e ganha cerca de R$ 3 para pedalar até o seu endereço.

O smartphone acabou com o hábito de pedir táxi levantando um dedo na beira da calçada. Restaurantes estão criando “dark kitchens” – versões de restaurante sem salão que oferecem apenas comida para entregas. Fintechs, edutechs, health techs. O mundo dos aplicativos é sobre escala. Um modelo de negócio em que o investidor só coloca dinheiro onde pode crescer exponencialmente. Ou, como dizem no Google, aplicativo bom é como escova de dentes, tem que ser usado pelo menos duas vezes ao dia.

Quando aceleradoras e investidores-anjos colocam dinheiro nas startups do momento, estão acreditando no retorno em um futuro próximo. Mas a lei do retorno parece que não contempla a força de trabalho com a mesma gana. Aí se começa a ouvir no vão livre do Masp: “Vem para a rua, vem, aplicativo não está pagando bem”. Menos de R$ 5 para uma entrega de mais de 5 km não é pagar bem.

Se o mundo da tecnologia é sobre números e dados, os números e dados não ajudam. Com salário de fome, são autônomos sem autonomia. A tal da flexibilidade de quem faz o próprio horário é falsa como nota de R$ 3. É muita pedalada para pouco tempo livre, muito sol e muita chuva na cabeça. É trabalhar sexta, sábado e domingo para não deixar de pontuar e perder os bairros de alta demanda, Moema, Paulista, Itaim Bibi. É baixar a cabeça para condições precárias porque emprego está em falta e entregar comida é o único ganha-pão que resta.

O 1º de julho é a primeira greve com cara de século 21. Sabemos que o país não está conseguindo lidar nem com a luta contra a Covid-19, mas precisamos falar da causa mais que justa dos entregadores. Falar da crise e da precarização do emprego, de renda mínima, do fim do trabalho e dos robôs. Com o otimismo dos ciclistas. Sempre.

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo

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Um comentario para "Quem vai entregar um pouco de futuro aos entregadores?"

  1. Nosso site é baseado no conteúda da sua divulgação, achei interessante. Vamos acompanhar para poder enriquecer nossa matéria.

    Sds.

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