Smartphones mudaram a luta contra a violência policial

Antes dos smartphones, a violência policial era praticamente invisível, mas ações violentas da reressão nunca são capturadas em filme. O problema do policiamento racista não será resolvido com mais visibilidade.

Pessoas filmam com smartphones e filmadoras ação policial no Harlem (NY), 30 de maio de 2020. David Dee Delgado / Getty

“Quantos não foram filmados ?!” Essas palavras apareceram em uma placa de papelão levada por um homem num recente protesto em Decatur (Geórgia, EUA), contra o assassinato de George Floyd pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis.

Essas palavras também apareceram em letras maiúsculas num banner carregado por manifestantes em Manchester (Inglaterra), rabiscadas a caneta na máscara de uma mulher em Nova York, e em cartazes em cidades de outros lugares.

A questão retrata a realidade complexa da brutalidade policial na era dos smartphones. Alude, por um lado, a como os smartphones passaram a ser usados como ferramenta para denunciar a polícia. Por outro lado, se refere às limitações dos celulares como ferramenta para lutar contra uma instituição gigantesca, militarizada e descentralizada, que tem uma história profundamente enraizada de violência contra pessoas pobres, particularmente as pessoas pobres de cor.

A pergunta também encoraja o olhar um pouco mais próximo para os notebooks, para enxergar os smartphones como mais do que apenas uma ferramenta. O pensador Gilles Deleuze argumentou uma vez que as máquinas “expressam as formas sociais capazes de produzi-las e usá-las”.

Os smartphones são máquinas incrivelmente expressivas. A maneira como são usados revela as relações sociais e as estruturas de poder que sustentam a sociedade moderna – incluindo suas divisões raciais.

Antes dos smartphones, a violência policial era praticamente invisível. O ataque mortal a Rodney King em Los Angeles, 1991, é uma exceção, em parte, porque a absolvição dos quatro policiais que o espancaram cruelmente provocou uma resposta violenta da população. Mas o ataque também se destaca porque foi filmado por uma pessoa com uma câmera de vídeo e enviado à estação de notícias, dando evidência visual relativamente rara da realidade do policiamento nos EUA.

Hoje, os smartphones são parte integrante das estratégias para controlar ação da polícia. Organizações de vigilância da polícia, que existem há décadas nas cidades do país, reconheceram imediatamente que os smartphones poderiam ser adaptados para documentar e reduzir potencialmente a opressão das pessoas de cor pelas forças da lei.

Quando, em 2016, Alton Sterling foi morto pela polícia. em Baton Rouge, Louisiana, por vender DVDs fora de uma loja de conveniência, o dono da loja, Abdullah Muflahi, filmou o assassinato, da mesma forma como a ONG “Stop the Killing” (Parem os Assassinatos, em tradução livre) cujos voluntários estavam monitorando o trabalho da polícia.

O advento da transmissão ao vivo, em particular, mudou o jogo, impedindo a polícia de criar uma narrativa falsa, confiscando celulares e apagando as imagens registradas pelos espectadores. A União Americana das Liberdades Civis (ACLU) e outros grupos criaram aplicativos para smartphones, como o Mobile Justice Michigan, aue facilitam a vigilância da ação da polícia e tornar mais fácil a transmissão das imagens.

As estratégias e sensibilidades digitais usadas pioneiramente por grupos de vigilância policial e organizações de direitos civis permearam movimentos progressistas na última década. Agora, manifestantes de todo tipo estão armados com celulares e mídias sociais.

Walter Scott foi assassinado em 2015 em North Charleston, Carolina do Sul, pelo oficial Michael Slager. Scott, desarmado, foi baleado cinco vezes nas costas e nas pernas enquanto tentava fugir.

Em seu funeral, o pastor agradeceu a Deus por Feidin Santana, o homem cujo vídeo do assassinato, em seu celular, levou o assassino de Scott à justiça. “Mantenha seu celular à mão, mantenha sua carga”, implorou o pastor aos participantes do funeral.

Para muitas pessoas de cor, o sentimento de incerteza, de nunca saber quando a violência patrocinada pelo Estado pode ocorrer, está inscrito em seu relacionamento com o celular.

O impulso de Diamond Reynolds, depois de ver seu namorado, Philando Castile, ser baleado durante uma parada de trânsito de rotina em Minnesota em 2016, imediatamente pegou seu celular e transmitiu ao vivo a vida de Philando sendo extinta no banco do carro, ao lado dela. Ela queria que o mundo soubesse que “essa polícia não está aqui para nos proteger e servir. Eles estão aqui para nos assassinar. Eles estão aqui para nos matar porque somos negros.”

Tanya Marshall, mãe negra, professora e membro ativo de sua comunidade em Cambridge, Massachusetts, lida com a incerteza usando o celular como recurso constante para seus filhos. Sua regra é rígida – seus filhos devem manter seus celulares sempre à mão e carregados, para ligar imediatamente se tiverem um encontro com um policial, para que ela possa intervir e, esperançosamente, impedir uma violência.

A estratégia digital de Marshall para lidar com o medo persistente de que um policial prejudique seus filhos, ela a compartilha com outros pais negros.

Mas essa dinâmica está completamente ausente nas narrativas da mídia sobre celulares, que quase não se refere a esse uso dos celulares, especialmente aqueles quando usados por adolescentes.

São preocupações sérias. Mas o fato de que, na última década, os celulares passaram a ser vistos como elemento essencial em estratégias de enfrentamento por minorias oprimidas, bem como nos movimentos políticos mais amplos que lutam por justiça racial, sugerem a necessidade de uma compreensão mais sutil da tecnologia, que examinando as maneiras como os celulares refletem e reconfiguram divisões de longa data sobre raça, classe e gênero.

Uma análise mais aprofundada das normas para celulares também revela os mecanismos de opressão densos e em evolução usadas na violência policial contra cidadãos negros e pardos – mecanismos que podem diminuir o poder das estratégias digitais de defesa e denúncia.

No sentido mais básico, quem filma policiais tem um alvo nas costas. As histórias apimentam a teia de pessoas que foram intimidadas, perseguidas, espancadas, presas por filmar ações policiais contra civis.

Os policiais também aproveitam a conexão das pessoas com seus celulares para monitorar e assediar digitalmente. O Departamento de Polícia de Baltimore, por exemplo, usou uma plataforma de inteligência de mídia social para monitorar e prender manifestantes durante os distúrbios após a morte de Freddie Gray, em 2015. Era um jovem de Baltimore cuja medula espinhal havia sido cortada quase pela metade após uma “viagem difícil”, na traseira de uma van da polícia.

Ao mesmo tempo, as agências policiais responderam às táticas dos celulares adquirindo suas próprias câmeras.  Seis em dez departamentos de polícia locais e quase a metade dos escritórios de xerifes nos EUA implantaram câmeras corporais, em seus uniformes, em 2016.

Isso foi inicialmente visto com entusiasmo pelos departamentos policiais e também por grupos de direitos civis. Acreditavam que as câmeras corporais dariam proteção e responsabilidade: os policiais pensavam que as câmeras os protegiam, enquanto grupos de direitos civis como a ACLU acreditavam que as câmeras reduziriam o uso da força e aumentariam a responsabilidade policial.

Da perspectiva dos grupos de direitos civis, os resultados foram decepcionantes. As pessoas comuns não têm opinião sobre como os policiais usam suas câmeras, que os policiais ligam e desligam livremente. Assim, não há imagens de câmeras corporais, por exemplo, quando a polícia de Louisville (, Kentucky), usou, em 13 de março de 2020, um aríete para invadir o apartamento de Breonna Taylor, no meio da noite, e a matou a tiros, em sua cama.

Mesmo quando as câmeras corporais dos policiais são ativadas, há relativamente poucos casos em que as imagens levaram policiais a serem punidos ou presos por violência. Além disso, embora os promotores tenham se mostrado ansiosos para usar imagens de câmeras corporais como evidência nos tribunais, os defensores dos direitos civis acham difícil acessar essas imagens e usá-las como evidência contra eles – imagens que são filmadas sem consentimento, geralmente em espaços privados.

Perversamente, o poder dos celulares para criar um instantâneo visual vívido da agressão policial também teve o efeito de diminuir a importância de interações violentas que não são capturadas pelos celulares.

Num dia em 2017, Elena Mondragon, de 16 anos, estava andando com o namorado em Fremont, Califórnia (no Vale do Silício) quando policiais disfarçados, armados com rifles AR-15, dispararam em seu veículo, e a mataram. Poucos casos exemplificam melhor a má conduta policial grosseira e violenta, mas, como disse ao “Guardian”  a advogada Melissa Nold, que representa a família. Segundo ela, o caso não teve força porque não havia um filme. “Quando não há vídeo, é uma batalha para nós. As pessoas tendem a acreditar no que é relatado pela polícia.”

Esses obstáculos e falhas reforçam o ponto óbvio, mas importante, de que celulares, câmeras corporais e outros dispositivos digitais são ferramentas, não soluções; não há correção tecnológica para o policiamento racista.

No entanto, as maneiras pelas quais as pessoas usaram seus dispositivos digitais na luta política pela justiça racial nos últimos dez anos são esclarecedoras.

Suas estratégias revelam um terreno dinâmico de resistência, no qual os celulares são sendo usados para expandir a ação individual e amplificar um pedido de mudança que, cada vez mais, não pode mais ser ignorado.

Fonte: Jacobin

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