Epidemiologista acusa gestão desastrosa da pandemia no Brasil

Jesem Orellana, da Fiocruz, critica o governo Bolsonaro por ter se omitido no início da crise causada pela pandemia, insistindo em ignorar as mortes, quando o país caminha rumo ao segundo do mundo em óbitos.

Bolsonaro, além de não agir, ridiculariza o vírus, promove aglomerações e sequer usa máscara

Em se tratando de Presidência da República, todo e qualquer comentarista brasileiro pisa em ovos para explicar porque Bolsonaro erra. Com medo de parecer parciais, usam palavras delicadas e diplomáticas, perplexos que estão com declarações grosseiras e obscenas, que pouco se importam com o que pensam os especialistas. Raros são aqueles que colocam os pingos nos is e denunciam a total incapacidade de Bolsonaro para ocupar o papel de um estadista, aquela pessoa que tem que falar pensando em todas as nuances de quem não pode ofender. 

O Brasil poderia estar desaparecendo numa mancha de oléo, ou numa queimada gigantesca, que Bolsonaro ia continuar fazendo piada na porta do Palácio modernista de Niemeyer. Os brasileiros podem estar sendo enterrados em massa em valas comuns que os comentaristas vão continuar mantendo a finesse e elegância do discurso neutro e anódino do telejornal. Mas o epidemiologista da Fiocruz Jesem Orellana desvia do padrão ao dizer com todas as letras que a gestão da pandemia no Brasil é “desastrosa”. São tantos erros e absurdos inimagináveis, que desastre é uma palavra suave para definir o que acontece no país.

“A gestão do problema da pandemia do novo coronavírus no nível federal foi desastrosa. O governo deveria ter discutido planos de regionalização há meses. Mas temos um ministro inoperante – depois de dois demitidos – que não fala, não propõe, perdido no meio do tiroteio.” Orellana é responsável por estudos da disseminação do novo coronavírus nas cidades brasileiras, com destaque para a capital do Amazonas, Manaus.

Ele não parece lamentar a condução do governo federal, mas como todo agente de saúde, parece mais estar perplexo pela atual crise sanitária estar não apenas longe de passar, como sugerir algo ainda mais cataclísmico. Para ele, no momento em que o Brasil está ganhando a competição entre os piores resultados mundiais dessa pandemia, a flexibilização de medidas de isolamento, proposta em diferentes estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, “não faz o menor sentido”.

O especialista afirma, em entrevista à Rede Brasil Atual, que são muitos os fatores que influenciam na disseminação de um vírus e que cada região, cada cidade, sofre o impacto da pandemia de uma forma única. Por isso, mesmo, Orellana questiona até as estatísticas do vírus como são divulgadas pelo Ministério da Saúde. “Essa história de curva epidemiológica brasileira é algo tão impreciso. Existe uma curva no Rio de Janeiro e outra em São Paulo. Não tem como colocar tudo em um número só”, disse, referindo-se às peculiaridades de cada população, de cada geografia e de cada medida governamental local, que são reduzidas a um único gráfico abstrato.

Tais especificidades apontam para o fato de que a pandemia de covid-19 ainda deve durar por um bom tempo e possivelmente a doença deverá retornar, em surtos regionais. Ele pinta um quadro assustador e previsível ao mostrar que, enquanto a cidade de São Paulo consegue um controle relativo da doença, por sua vez, uma cidade do interior do estado registra um aumento de casos, mas que, por falta de testes, passa “em branco”. Uma ou mais pessoas contaminadas viajam para a capital e circulam em locais de grande aglomeração, contaminando paulistanos e até mesmo pessoas de outras cidades do interior. Com isso, ele mostra que todo esforço de meses de isolamento social desgastante pode não servir para nada, se as vidas poupadas antes, morrerem depois. 

Tempo desperdiçado

O Brasil, hoje (5), é o segundo país com maior número de infectados no mundo (614.941) e o terceiro em total de mortes (34.021) provocadas pela covid-19. A recomendação das autoridades científicas sempre foi a de realização massiva de testes, acompanhada de medidas de distanciamento social, como forma de conter a propagação da doença. Mas nada disso é feito no país, levando à subnotificação, fato admitido até mesmo pelo próprio governo. Os números, portanto, de mortes e de casos, são maiores do que os relatados.

“Relaxar medidas de isolamento agora é algo completamente desconexo com todo o conhecimento científico acumulado sobre epidemiologia. Logo, não consigo dar uma explicação plausível”, diz o médico desalentado.

Orellana afirma que o ideal seria o Brasil ter estruturado um plano de ação e vigilância sanitária mesmo antes de começar a ser impactado pelo vírus, já que o alerta sobre o potencial da pandemia foi dado no fim do ano passado. O problema é cobrar este tipo de iniciativa de um governo que não se antecipa a nenhuma catástrofe possível. Mesmo tendo recursos para isso, desmobiliza equipes de planejamento, para mobilizar todos para a guerra ideológica, ou seja, para falar besteiras em entrevistas coletivas e fazer toda a direita e esquerda, a base de apoio e de oposição, falar sobre o tema que lhe interessa, como a viabilidade da cloroquina como cura para a covid-19.

Depois de ter se iniciado na Ásia e na Europa, a América Latina foi uma das últimas regiões no mundo a registrar casos da infecção – no Brasil, o primeiro caso relatado foi em 25 de fevereiro. Havia tempo hábil para a formação de estratégias, diz o cientista, mas nada foi feito e nem sequer está nos planos do governo Bolsonaro, que só quer flexibilizar o isolamento social, alegando “salvar a economia”, o que certamente vai piorar o cenário. Todos os líderes nacionais que titubearam no confinamento horizontal “para garantir resultados econômicos”, acabaram com mais mortes do que poderiam administrar e uma depressão econômica de proporções bíblicas.

“Medidas preventivas deveriam ter sido tomadas. Deveriam organizar a infraestrutura dos municípios previamente, com investigação de casos de forma detalhada. Precisávamos de busca ativa para identificar redes de contágio para conter a disseminação. O governo perdeu a possibilidade preventiva. Agora, o máximo que podemos fazer é ‘enxugar gelo’. Você não impede a disseminação, então aumenta leitos, estruturas, UTIs. Mas é como se você tentasse esvaziar uma caixa d’água sem desligar a torneira”, explicou.

Orellana, como tantos outros infectologistas e epidemiologistas, sabem exatamente tudo, passo a passo, que o governo poderia ter feito, pois este tipo de planejamento é sua matéria prima de trabalho. Porque estas medidas foram previstas com décadas de antecedência. Mas elas dependem da vontade política do governo. E isto não há, senão a vontade de surfar na onda de um atleta invencível que circula entre oceanos de vírus sem ser atingido.

Desigualdades regionais

As diferenças das taxas de mortalidade entre as regiões do país evidenciam como é impreciso tratar a pandemia de forma única em todo o território brasileiro, mostra o pesquisador. “Essas taxas variam muito. Se você pega estatísticas de São Paulo e compara a qualidade do preenchimento das declarações de óbito com Boa Vista (Roraima), será uma diferença brutal. São Paulo tem uma quantidade de serviços e profissionais mais bem treinados em grandes centros. Tem que ter muito cuidado para fazer essas interpretações. Comparações são muito perigosas e devem ser feitas por profissionais adequados”, disse o especialista.

Uma constante em todo o país foi o aumento expressivo de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que é uma das consequências mais graves da covid-19. Em alguns estados, há um aumento expressivo de mortes registradas como tendo sido causadas por SRAG mas, ao mesmo tempo, um baixo registro de infecções pelo coronavírus Sars-Cov2. Isso mostra que, os baixos índices de covid-19, possuem mais relação com o baixo número de testes da população realizados e não se deve acreditar que a região esteja com uma presença pequena do vírus.

É o caso de Minas Gerais, por exemplo. Enquanto São Paulo registra 129.200 doentes com covid-19 e o Rio de Janeiro, 60.932, o estado governado por Romeu Zema (Novo) tem oficialmente 13.034 casos. A mortalidade registrada pelas autoridades mineiras também é muito inferior em relação aos seus vizinhos do Sudeste. Em São Paulo e Rio de Janeiro, são 18,6 óbitos por grupo de 100 mil habitantes e 36,6 por 100 mil habitantes, respectivamente. Em Minas Gerais, 1,5 por 100 mil.

Isolamento social

Vista a sequência de erros e a falta de ações efetivas do governo, medidas de isolamento social são essenciais para evitar uma disseminação ainda mais descontrolada de covid-19. Orellana lembra que é muito difícil saber quando será de fato o pior momento da pandemia no Brasil, que segue em crescimento quase vertical. Com isso, ele questiona as inúmeras previsões matemáticas que pipocam na imprensa, como sensacionalismo, quando se reduzem a cálculos logarítmicos sem observação apurada das variações que ocorrem em cada localidade para definir o controle da epidemia (uso de máscaras, bloqueios de trânsito, rodízios, lockdowns, fiscalização do comércio, fechamento de praças, controle de festas, etc).

“Não diria que hoje é o pior momento. Por enquanto, a curta história tem nos mostrado que a maioria das previsões sobre o pico falhou. As pessoas tentam adivinhar algo imprevisível. Temos que ter atenção. Mas relaxar as medidas de distanciamento em um momento em que as curvas de mortalidade e de contágio estão aumentando sem parar é algo que não faz o menor sentido.”

Então, o relaxamento das medidas neste momento é “completamente desconexo com todo o conhecimento científico acumulado sobre epidemiologia. Não consigo dar uma explicação plausível”, conclui Orellana

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