As marcas do racismo estrutural na legislação e na sociedade dos EUA

Desde a Lei dos Direitos Civis de 1964, os americanos negros estão equiparados perante a lei, e a “separação racial” é ilegal. Mas até hoje a maioria branca é, em média, mais abastada, mais instruída e mais saudável.

Manifestante segura cartaz com a frase "Vidas negras importam": que marcam os protestos contra a morte de George Floyd l Foto: B. Snyder/Reuters

“Eu quero que você saiba que é importante!”, dirige-se o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama aos jovens afro-americanos. “Quero que saiba que a sua vida é importante, que os seus sonhos são importantes”, dizia, num discurso em vídeo transmitido ao vivo, na noite desta quarta-feira (03/06), sobre os protestos após o homicídio do afro-americano George Floyd por um policial.

São muitos cidadãos negros dos EUA incapazes de acreditar que sejam importantes e que possam realizar seus sonhos, pois nos protestos de massa, reunindo gente de todas as cores, a questão é mais do que a violência policial: trata-se de eliminar o racismo e a desigualdade social que ele acarreta.

Mas a discriminação não já deveria estar superada, depois de tantos séculos? Desde a Lei dos Direitos Civis de 1964, os americanos negros estão equiparados perante a lei, e a “separação racial” é ilegal. Diversos programas de ação afirmativa vieram para compensar as desvantagens sofridas pelos afro-americanos, por exemplo reservando-lhes vagas de estudo. Contudo até hoje a maioria branca é, em média, mais abastada, mais instruída e mais saudável.

Nos últimos dez anos, a renda média da população negra esteve de 20% a 25% abaixo da dos brancos. E isso não se deve a alguns superricos, como os multibilionários Bill Gates ou Jeff Bezos, pois o índice leva em consideração quantas unidades residenciais estão acima ou abaixo da média.

E são poucos os negros de família pobre que conseguem escapar dessa situação: aqueles cujos pais se situam na quinta parte inferior da escala de renda só têm a metade da chance de uma criança branca de galgar a um grupo mais alto, revelou um estudo da Brookings Institution.

Discriminação de longa tradição

Por que isso, se oficialmente não há desfavorecimento? “Existe uma série de leis e práticas legais que resultam mais negativamente para os afro-americanos do que para outros grupos populacionais”, explica Christian Lammert, cientista político do Instituto John F. Kennedy da Universidade Livre de Berlim. “Entre elas estão a persecução criminal, a instrução e o abastecimento de saúde.”

Esse racismo estrutural tem uma longa tradição nos EUA: quando o governo introduziu seguros sociais, em 1935, excluiu deles os empregados domésticos e trabalhadores rurais e ocasionais – grupos profissionais de baixos salários, em que predominam os negros.

Como exemplo atual, Lammert cita a política para drogas: “Delitos relacionados a drogas principalmente consumidas por negros são punidos com severidade bem maior do que se tratando de drogas de designer, consumidas sobretudo em Wall Street.” Esse é um motivo importante por que é três vezes mais provável um negro ir parar na cadeia do que um branco, com impacto sobre suas chances educacionais e seu progresso profissional.

Na saúde, a situação é semelhante. Nos Estados Unidos não há um seguro de saúde universal, só que ganha bem ou tem um empregador justo pode se assegurar. Segundo um estudo da Kaiser Family Foundation, em 2018 11,5% da população afro-americana não tinha seguro, contra 7,5% dos brancos. Além disso, o sistema de saúde americano é um dos mais caros do mundo: cerca de dois terços das inadimplências privadas do país são consequência de despesas médicas, e também nesse ponto os negros são os mais atingidos.

Mais pobres, menos vida

Embora a separação racial seja oficialmente proibida, em muitos lugares ela continua existindo de fato. Afro-americanos seguem vivendo em bairros de negros, e os brancos nos de brancos. “Nas comunidades negras, o abastecimento de saúde é incomparavelmente pior do que nas habitadas principalmente por brancos”, explica Lammert.

O mesmo se aplica às escolas, cuja qualidade é fundamentalmente pior nos bairros de afro-americanos, o que “se reflete nas chances dos negros no mercado de trabalho”. E aí a cobra morde o próprio rabo: as diferenças de renda entre os grupos étnicos dos EUA são ao mesmo tempo causa e efeito, se autoperpetuando.

Contudo, local de residência, saúde e educação estão também relacionados de outra maneira, prossegue Lammert: “Os negros costumam viver em bairros com alta poluição atmosférica, onde, além disso, têm menos chances de comprar alimentação saudável, nutrindo-se em geral de fast-food congelada.”

Esse é um motivo central por que eles são mais atingidos por moléstias crônicas: afro-americanos adultos sofrem de diabetes com frequência quase duas vezes superior aos brancos. A do tipo 2, adquirida, que afeta cerca de 95% dos diabéticos, costuma se desenvolver em decorrência de alimentação errada e se manifesta mais nas classes não instruídas.

O estado de saúde, em média pior, também se reflete numa expectativa de vida mais baixa, que é atualmente quase quatro anos inferior à da população branca, segundo dados oficiais do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde. Assim, uma proporção enorme das vítimas de covid-19 é de afro-americanos, tanto devido à saúde comprometida quanto ao mau abastecimento hospitalar nas respectivas comunidades. Ou porque eles simplesmente não podem se permitir deixar de ir trabalhar.

Fonte: DW

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