O futuro já chegou e ele veio das ruas, das manifestações feministas

Ofelia Fernández, a mais jovem deputada da América Latina, fala sobre sua trajetória desde o movimento estudantil argentino, sua integração ao Ni Una Menos, o novo momento que a Argentina viva com a eleição de Alberto Fernández e como imagina o mundo pós-pandemia.

Ofelia Fernández tinha quinze anos e vários de militância quando o primeiro Ni Una Menos ocupou a praça do Congresso em uma concentração que não foi uma marcha, mas um amontoado de corpos surpreendidos pela convocatória. 

Milhares de nós nos lançamos às ruas porque entendíamos que “feminicídio” não é só um tipo de delito penal. Entendemos que se tratava de uma categoria política que denunciava o modo que a sociedade usa para tornar natural algo que não é: a violência machista. 

No ano seguinte a concentração virou marcha: do Congresso à Praça de Maio. Se somaram as organizações com suas bandeiras, e as calçadas transbordaram de companheiras de mãos dadas, mães e filhas, avós, colegas de colégio e do trabalho que saíam de seus postos para se mobilizar junto a isso que era um duelo coletivo pelas que nos faltavam e alegria infinita de perceber que estamos juntas e livres, e ocupando as ruas. 

O que veio depois disso foram anos de erupção feminista. Cada uma tinha um motivo pessoal para marchar. Sabíamos que éramos gotas se convertendo em maré. Havíamos compreendido em massa que acabar com a violência machista era muito mais que pedir para que não nos matem. Era denunciar a invisibilização de nossos trabalhos, e a violência de um sistema econômico que nos quer endividadas, com salários e aposentadorias de miséria. Então já não podíamos faltar em nossas manifestações que se converteram em greves, os sindicatos, as companheiras da economia popular, e os milhares de coletivos que se formaram nestes anos, no calor das assembleias, encontros e mobilizações. 

Com esse ímpeto, a luta histórica pelo aborto legal, seguro e gratuito se fez mais multitudinária que nunca. A força da rua empurrou Ofelia da praça até o plenário de comissões em que se debatia o projeto pela primeira vez na história. “Este pañuelo [lenço verde que representa a luta feminista] é nosso uniforme nas escolas”, dizia ela como representante do movimento estudantil, motor fundamental da revolução feminista. 

Apenas um ano depois se converteria em legisladora da Cidade de Buenos Aires, a mais jovem da América Latina. “Jamais alguém escutou tanto sobre política como nós nas vigílias em frente ao Congresso. E sabe o que mais? [depois disso] Nós até perdemos um pouco o respeito [pelos parlamentares] depois de escutar as barbaridades que tinham para nos dizer. Ninguém pode vir dizer que nos falta nem capacidade, nem experiência, nem formação para que ocupemos nós mesmas [espaços de poder]”, dizia durante a campanha de 2019. 

Leia a entrevista completa: 

Página/12: Uma vez você disse que no primeiro Ni Una Menos foi como se tivesse entendido tudo que te causava incômodo na vida até então. Como foi viver esse momento de explosão nas ruas?

Ofelia Fernández: Foi chave, um divisor de águas. Foi literalmente o momento em que pude entender e condensar uma série de experiências e injustiças nas quais eu vinha pensando como militante, mas que todavia não encontrava um nome. Antes do Ni Una Menos entendia que havia uma série de desigualdades específicas que tinam a ver com a minha condição de gênero, mas eu as tinha fragmentadas, separadas. O feminismo para mim era um objetivo teórico e prático de desconstruir o machismo interior, tinha mais a ver com um caminho para chegar a me denominar feminista que o pertencimento a um movimento, que se expressava nas ruas em determinado momento da história. 

O Ni Una Menos me permitiu entender que todas essas coisas eram uma só, que se chamava patriarcado e que mostrava sua pior versão nessas mortes que denunciávamos de forma massiva. 

Mas também me fez entender que ser feminista não era um processo intelectual nem a conquista de nenhuma credencial, mas sim que era essa marcha, essas pessoas. Era saber que nesse momento começávamos a tomar a decisão de estar de um lado na história, do dos que querem transformá-la. Entendi também que a agenda do feminismo não eram reivindicações nem secundárias, nem isoladas, nem exageradas. Eram parte de uma totalidade, de uma integralidade que tínhamos que começar a incorporar de imediato como militantes. Foi um ponto de ruptura. 

Você se recorda de que discussões tinham naquele momento? Quais foram essas mudanças que aconteceram depois de 2015? 

Em 2015 fomos candidata nas eleições do Centro de Estudantes de Carlos Pellegrini [o equivalente ao grêmio estudantil das escolas brasileiras], duas mulheres e ganhamos, pela primeira vez na história. Nas mobilizações, a de 2013 por exemplo, uma das consignas era a implementação da Lei de Educação Sexual Integral (ESI), mas era uma exigência considerada pouco importante. O conflito central era contra a Nova Escola Secundária e a ESI era uma coisa mais distante. E de repente em 2015 começou a ser uma reivindicação chave porque o movimento estudantil se converteu feminista feminista e entendeu que a ESI era uma ferramenta importante para ampliar a disputa de vias em torno dos nossos vínculos, que era algo que já vínhamos fazendo. Quando estava no primeiro ano, perguntei às companheiras da Comissão de gênero sobre a história da comissão. Me contaram que a princípio se chama Comissão Mulher e não precisamente por uma crítica ao binarismo, senão porque quando era Comissão Mulher não podiam ir os homens. E nesse momento era assim. E eu também naturalizava isso. Se fazemos uma retrospectiva, isso tem a ver com fato de que os militantes “mais importantes” eram os homens. Não podia haver uma comissão onde eles não pudessem participar, discutir, encabeçar. Havia muitos sinais, muitos sintomas, mas também não tínhamos a força coletiva. E isso mudou radicalmente depois do Ni Una Menos. Seja porque pudemos conduzir o Centro Estudantil, ou protagonizar uma mobilização contra um tipo violento e dizer que isso era violência de gênero, que havia um padrão no qual exercem a violÊncia e isso não é secundário. 

Começaram a viajar para os Encontros e se tornar visíveis para os demais, como foi isso? 

Em 2016 foi o primeiro ano que viajamos como Centro Estudantil para o Encontro Nacional de Mulheres. Fomos também o primeiro colégio a redigir um protocolo contra a violência de gênero. Tudo isso foi em 2016, e não é casualidade. O nível de iniciativa que a juventude sempre tem, combinada com a possibilidade dessa nova agenda, nos permitiu desafogar um monte de injustiças que vivíamos nas escolas, enquadrá-las nesses movimento que se chama feminismo. Mudaram completamente as discussões e a fome de fazê-las. Ao exercício de pensar em que timo de escola queríamos se somou também pensar que essa escola seria uma escola feminista. Esse cruzamento foi harmônico. 

Como foi passar de uma referência militante jovem a dirigente de uma organização política? Em 2015 aconteceu essa efervescência das organizações e a proliferação de novos ativismos. Como você vive isso enquanto legisladora com as tuas companheiras de organização?

Nunca fui muito ortodoxa no que implica a organização orgânica. Por isso eu sou militante em uma organização (Vamos – Frente Pátria Grande) que tem mais a ver com a militância de base, setorial, com um olhar voltado aos movimentos. Me sinto confortável com a equipe que formamos para a legislatura, com os companheiros que trabalham em um tema específico, que territorialmente tem proximidade com uma problemática. Funciona porque nossa ligação é real. Para mim foi muito fácil essa transição porque penso nela dessa forma. Sou parte dos movimentos que acredito e tenho o suporte dos companheiros que seguem militando nas bases. Essa é minha referência e minha ponte que me trouxe até aqui. 

Como é integrar uma frente do governo, uma vez que você veio de experiências militantes sempre da oposição?

É diferente, óbvio. Mas também o cenário é muito particular, eu jamais poderia imaginar isso de estarmos todos enclausurados em nossas casas porque há um vírus dando voltas. Mas acredito que esse contexto serviu para deixar muito claro porquê vale a pena. A razão para nos unirmos e derrotar o macrismo não era só ganhar. Era para poder ter, em momentos como esse, um governante que cuide das pessoas. Não só em termos sanitários, mas também em sua orientação econômica, com medidas que dêem conta da realidade desigual que vivemos, do contexto socioeconômico em que estamos e da necessidade de que o Estado esteja presente para as maiorias. 

Claro que no meu imaginário do que significava ser governo apareciam outras coisas. A possibilidade de recuperar o que se perdeu nos últimos anos e não a de cair ainda mais fundo porque o mundo todo está caindo com uma pandemia. E nesse contexto de emergência estou confiante e me sinto bem no papel de congressista. 

Alberto Fernández disse durante a campanha se ele estivesse equivocado as ruas o fariam perceber isso. O que te faria sair às ruas para exigir uma mudança de rumo? 

Não quero especular com isso, nem gerar os cenários onde essa confiança poderia se desgastar. 

Somos um espaço que não tem razões para deixar de fazer suas críticas. Quando vimos o que aconteceu com o preço dos alimentos que tinham que chegar nos bairros, e vimos turbulências no caminho, Juan Grabois [colega de bancada] foi o primeiro a denunciar, sem que isso implique uma ruptura. Entendemos que é um projeto político amplo e que em alguns momentos uma visão pode imperar sobre a outra. Mas se temos algum desacordo, nós como uma ala específica, vamos demarcá-lo com muita exigência porque sentimos que fazemos parte, é nosso governo. Quando existe a confiança de que se faz parte de um processo que o país precisa, as coisas são mais pontuais, mais específicas. A diversidade é uma fortaleza de espaço. 

As críticas não tem objetivo de desestabilizar, mas de se impor como um ponto de vista que nos parece importante e inadiável, que o ponto de vista dos de baixo, em distintos planos. 

Seja pela economia popular ou pelo próprio movimento feminista. E isso para nós é uma virtude. 

Em 2019 se criou muita expectativa de que o feminismo ocuparia novos lugares na representação política e no governo em geral. Como você vê o espaço que o feminismo tem hoje?

Há uma dificuldade enorme entre a exposição da violência e a capacidade de ação. O isolamento obrigatória agrava a vulnerabilidade. A menor possibilidade de contato, de presença, de intervenção real e territorial gera condições piores. Nesse contexto, o Ministério de Mulheres, Gênero e Diversidade é uma conquista muito importante que eu acredito que vem tentando estar à altura. Também passou muito pouco tempo e eu sou paciente para ver as mudanças estruturais. Não são processos que podem se desenvolver tão rápido. Passar de uma política de cortes a ter orçamento destinado ao combate à violência, do fechamento de locais de acolhimento à políticas de proteção são mudanças muito grandes. E isso está em construção.  

Há medidas de suporte. A linha 144 foi ampliada [equivalente ao 180 do Brasil], as trabalhadoras que recebem as denúncias tiveram um bônus salarial. Melhorar seus salários é importante porque implica que percebam que são importantes e uma peça chave do Estado destinada a acolher as companheiras que sofrem violência. Claro que isso não é suficiente nessa sociedade onde cada medida que lançamos possivelmente ainda não esteja salvando nossas companheiras. 

Na linha de frente contra o vírus estão sobretudo as trabalhadoras que cumprem tarefas profundamente “feminizadas”, sem o devido reconhecimento salarial. Também com relação às tarefas de cuidado no lar, que sempre têm à frente as mães, as chefas do lar que não recebem nenhum reconhecimento da sociedade por seu trabalho. Nós, as feministas, temos uma visão particular sobre a pandemia que inclui também essas questões. 

Como é o seu vínculo com o movimento feminista hoje?

Estou vinculada da mesma forma de sempre. Sinto que faço parte. Sempre fui uma militante do movimento feminista e sigo sendo. O fato de ser legisladora não me tira isso. Ser legisladora só me dá a possibilidade de projetar minha voz um pouco mais alto ou tentar fazer com que tenha influência nas decisões que se tomam num lugar específico, mas minha noção e meu pertencimento a essa causa segue sendo a partir do lugar de militante. Este ano foi mais difícil nos encontrarmos em nossos lugares comuns e não teve tanto a ver com a mobilização, mas com as redes que seguimos tecendo virtualmente eu me sinto profundamente parte. 

Acredita que há coisas que não estão sendo ditas em relação aos adolescentes a pandemia? Como você avalia os discursos sobre os jovens que circulam durante essa crise?

Diferente dessa história que se conta, de que o adolescente quer estar fora e tudo isso, ao meu redor eu os vejo muito respeitosos e cuidadosos com tudo que implica esse processo. Eu por exemplo tenho 20 anos e estou no grupo de risco. E isso acontece com um monte de outros jovens. E eles entendem e estão em suas casas se cuidando, ainda que haja alguns que preferiram ir à praça dizer que o vírus não existe. Mas aí também há sempre o prazer do adulto de explicar as coisas como se nós não fossemos capazes de entender. Esses mitos de que os jovens eram os que iam quebrar a quarentena e etc, não creio que condizem com a realidade. Não sei se precisa aprofundar um olhar sobre a juventude, acho que deveriam levar em consideração a visão da juventude sobre si mesma e se dar conta de que estamos dois dedos à frente. 

Como você imagina o mundo pós-pandemia?

Não sei. Não posso dizer que mundo teremos em um mês. Creio que não seria bom acelerar. 

Entendo que é uma tarefa fundamental pesar o depois, mas creio que é colocar muita pressão e querer ter a capacidade de intelectualização para responder o que vem pela frente. Estão desejando “voltar à normalidade”. Mas que significa essa normalidade e qual foi o preço? 

Temos que poder delinear ao menos estas questões para estar prontos para o mundo que está por vir. 

Na verdade, para construir o mundo que está por vir. Temos que poder colocar termos e condições aos modos de vida e de exploração desse mundo para nos assegurarmos de que não nos toquem as mesmas coisas, que possamos mudar em tempo alguns eixos fundamentais, ter um mundo sustentável. Não é muito concreto isso que digo porque também cada um lida com suas próprias angustias e frustrações nessa quarentena e é difícil canalizar isso em uma expectativa contundente e clara do que vai vir depois, mas sabemos que estaremos aí de peito aberto. Sobretudo agora que temos tanta saudade de fazê-lo e que claramente entendemos qual é o risco de não militar para mudar a história.

Fonte: Página 12

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