Chile: Em meio à pandemia, revolta popular

Ao que parece, para o vírus da revolta também não há vacina – e é só questão de tempo para que esta volte a se espalhar

Para o presidente Sebastián Piñera, a chegada da pandemia do novo coronavírus no Chile não poderia ter ocorrido em melhor momento. O país vivia, desde 18 de outubro do ano passado, combativas e massivas manifestações populares por um novo sistema político e econômico, respondidas a ferro e fogo pelos temidos carabineros e pelos soldados do Exército, jogados nas ruas aos montes, como cães raivosos prontos a flagelar. Ao menos 34 pessoas foram mortas, 3,4 mil feridas e quase 9 mil presas. Houve toque de recolher e Estado de emergência. Mas a disposição popular era gigante, e Piñera foi forçado a se dobrar.

No dia 25 de outubro, 1,2 milhão de pessoas tomaram as ruas de Santiago – que tem população total de 5,6 milhões –, no que se nomeou La marcha más grande. Em novembro, o governo anunciou um plebiscito constitucional. Mas as marchas seguiram. Em dezembro, centenas de milhares de pessoas voltaram à Plaza Itália, convertida em Plaza de la Dignidad, e cantaram “El pueblo unido jamas será vencido” junto aos lendários músicos do Inti-Illimani, em meio a bandeiras chilenas e mapuches.

Frente à insistência das ruas, indomáveis pela força e irrefreáveis pelas concessões, restou a Piñera – cuja popularidade despencara – sonhar com os dias de fevereiro, quando as férias no país trazem o fechamento de escolas e universidades, recesso parlamentar e a saída de milhares de santiaguenhos para outras localidades. A expectativa era de que, neste mês, as manifestações parassem. Mas, ainda assim, elas seguiram – ainda que reduzidas.

“‘Março já vem’, é a frase que hoje se escuta em muitos rincões do país, em referência à luta social”, escreveu Pedro Santander. A agenda do mês era cheia: no 8 de março, 3 milhões de mulheres iam às ruas. No dia 11, era a vez dos secundaristas as tomarem. No dia 16, a volta às aulas trouxe mais manifestações. E o mês seria fechado pelo Dia do Jovem Combatente, no dia 29, que estenderia o tapete vermelho para o Plebiscito Nacional, no dia 26 de abril, quando os chilenos decidiriam sobre a redação de uma nova Constituição para o país, regido ainda por uma Carta Magna dos anos 1980 promulgada por Pinochet.

No entanto, no dia 18 de março tudo mudou. Com 37 casos de Covid-19 confirmados, o acaso pandêmico reluzia aos olhos de Piñera como uma oportunidade de ouro. Foi decretado estado de exceção e, mais uma vez, o país foi tomado toques de recolher e militares nas ruas. O plebiscito foi adiado para outubro, enquanto Piñera voltava a adotar suas convencionais medidas neoliberais – US$ 19 bilhões em linhas de crédito foram oferecidos aos bancos.

A quarentena restritiva, primeiro, foi só decretada nos bairros mais ricos de Santiago, enquanto o preço dos produtos essenciais saltava e as Administradoras de Fundos de Pensões registravam perda histórica. O pico da desfaçatez do presidente chileno foi em 3 de abril, quando, acompanhado por um caminhão militar, Piñera foi à Plaza de la Dignidad esvaziada e posou, sorrindo, para uma foto. “A situação é de saúde ou barbárie, e quando sairmos dela, os de baixo irão para cima dos que estão acima”, escreveram Gonzalo Ravanal e Pedro Santander.

Mas, aparentemente, a base do país que Piñera certa vez disse ser um “oásis democrático” não esperará o fim da pandemia para se revoltar. Ontem, na comuna de El Bosque – uma das regiões mais pobres de Santiago –, a população quebrou o isolamento e foi às ruas protestar pela escassez de alimentos e falta de apoio econômico do governo. Os carabineros reprimiram a manifestação com canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo, ao que foram respondidos a pedradas, pauladas e barricadas ardentes. Pouco depois do conflito, a algumas quadras dali, um caminhão frigorífico foi saqueado. Em Villa Francia, na comuna de Estación Central, uma manifestação similar ocorreu, com um ônibus incendiado.

Os casos se somam. No dia 27 de abril, Dia do Carabinero, por exemplo, na comuna de La Florida, um grupo de cerca de 30 pessoas se reuniu para realizar uma tímida manifestação. Ouviram estampidos, e imaginaram serem bombas. Sentiram o impacto, e imaginaram serem balas de borracha. Correram, e foram perdendo a força vital. Eram balas. Ao menos dez foram atingidos. Os disparos, apurou-se, partiram de dois carabineros, agora afastados de sua função e acusados por tentativa de homicídio.

“O Chile despertou”, era o que gritavam manifestantes e pixações em outubro. A pandemia serviu para acamá-lo. Mas, ao que parece, para o vírus da revolta também não há vacina – e é só questão de tempo para que esta volte a se espalhar.

“Não são outra coisa senão expressão de angústia e de fome, e isso está generalizado no país. Houve manifestações, barricadas e incêndios também no porto de San Antonio, Coquimbo e outros lugares do país, e o interessante é que há um constante aumento do conteúdo político nelas. Vão além do imediato, estão apontando o governo e o neoliberalismo como seus inimigos”, diz o líder da Unión Patriótica (UPA) e do Partido Comunista Chileno – Ação Proletária (PC[AP]), Eduardo Artés Brichetti.

Para ele, é “impossível” que Piñera saia fortalecido ao fim da pandemia. “A pandemia desmascarou em toda sua amplitude o Chile de máxima injustiça social e em crise econômica.”

Publicado originalmente na Revista Opera

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