Uberizados se organizam e questionam informalidade

A informalidade atinge 41% dos trabalhadores. Sem direitos ou futuro, buscam sobreviver. Cenário perfeito para o projeto ultraliberal: usar algoritmos para gerenciar massa desiludida. Mas, com a pandemia, um princípio de resistência desponta

Foto de Cezar Xavier

Há quase duas semanas, no dia 17 de abril, entregadores de aplicativo de delivery de São Paulo protestaram contra pagamentos baixos e falta de equipamento de proteção individual. Com suas motos, bicicletas e patinetes, fecharam a avenida Paulista. Desesperados, buzinavam, apitavam e vociferavam contra a exploração do trabalho promovida pelas empresas-aplicativos – intensificada em plena pandemia.

Máscaras, luvas e álcool gel são distribuídos em poucos postos de atendimento. A maioria tira dinheiro do próprio bolso para minimizar os riscos de contaminação; quem não tem o dinheiro, trabalha sem proteção. Afinal, quem não trabalha, ou mesmo quem fica na rua e não recebe nenhuma chamada, não recebe nada ao final do dia.

Hoje, esses trabalhadores são os mais degradados e precarizados do mercado: trabalham mais de 14 horas por dia. Não têm direitos trabalhistas, são vilipendiados pela sociedade e esquecidos pelo Estado – para, ao final, ganhar pouquíssimo.

Mas uma coisa é inequívoca: a pandemia mostrou a importância dos precarizados para a população, como caixas de supermercado, garis, enfermeiros, entregadores por aplicativo, entre outros. Mesmo encarados como para-choques para manter parcela da população em quarentena, o visibilidade e reconhecimento do seu sofrimento é essencial.

Afinal, essas empresas aumentaram exponencialmente seus lucros: a iFood registrou, em março, aumento de 400% nas entregas de produtos; a Rappi declarou que deve triplicar o número de entregadores no Brasil e a Loggi se prepara para fazer o triplo de entregas diárias.

Esse crescimento e visibilidade não poderiam resultar em políticas de valorização dos trabalhadores por aplicativo? Para conversar sobre essas questões, o site Outras Palavras entrevistou o pesquisador Felipe Moda, membro do Grupo de Pesquisa Classe e Trabalho (GPCT) e mestrando do Programa de Ciências Sociais da Unifesp, onde investiga as condições de trabalho dos motoristas por aplicativo e as consequências da uberização nas relações de trabalho.

Como operam as empresas-aplicativo

Moda frisa um dado importantíssimo: Uber, iFood, 99 e Rappi empregam mais de quatro milhões de brasileiros, segundo estimativa de 2019. Juntas, são o maior empregador do país. Para não terem de se responsabilizar por seus trabalhadores, se registram no setor de tecnologia. Seriam meras “plataformas” que ligam o prestador de serviço aos consumidores.

Alegam não estipular jornada ou local de trabalho, nem exclusividade. Mas os fatos mostram o contrário: seu algoritmo favorece quem mais trabalha — e pune os que se desconectam. Os entregadores precisam seguir as regras da empresa, e a avaliação dos clientes é crucial para que continuem recebendo serviço.

Moda aponta que, como a remuneração destes trabalhos é composta somente por um percentual do valor cobrado pelo serviço executado, “todo o tempo existente torna-se, em potencial, tempo de trabalho”. Aí é que mora a grande perversidade dessas empresas-aplicativos: formar um exército de precarizados sempre à disposição para o trabalho, de maneira fácil, ao simples toque de um celular.

O trabalho informal, aponta, não é novidade no Brasil – ao contrário. Pela nossa herança colonial, foi amplamente praticado e estimulado no Brasil. Moda lembra os 300 anos de escravização, que, com a abolição, jogou milhões de trabalhadores à própria sorte, trazendo população branca europeia para ocupar seu lugar. Com isso, essa população negra ou mestiça passou a exercer atividades não reconhecidas pelo Estado, o que vem se perpetuando e agravando com o tempo.

Havia uberizados antes da existência do Uber. Moda considera importante desmascarar a novidade do trabalho informal por aplicativo no Brasil. Para ele, esse fundo histórico mostra uma especificidade brasileira que torna a uberização mais aceitável aqui, do que em países onde a formalidade do trabalho é a regra. Este tipo de vínculo (ou falta de) com as empresas é visto com naturalidade e até valor positivo pelos trabalhadores, que antes “se viravam” e agora se sentem parte de uma corporação ou categoria.

Com isso, Moda que em vez de ser algo novo, a uberização se revela uma síntese de algo que já era comum e invisível no mercado de trabalho. Mas ele também considera um equívoco achar que a uberização é a mesma coisa que o trabalho informal já conhecido.

Porém, essas empresas trazem uma novidade: o gerenciamento algorítmico do trabalhador, estimulando a competição entre as pessoas – todos, claro, submetidos a um mesmo capital transnacional. Ele saliente o fato do banco de dados articular e coordenar o trabalho de milhões de entregadores ou motoristas conectados. Para o pesquisador, isso torna o grau de exploração muito maior e o trabalhador muito mais dependente da empresa. Esses trabalhadores competem entre si para ser o melhor e disputar os recursos distribuídos sem muita transparência.

Após as contrarreformas impostas a partir do governo Michel Temer, o protagonismo dessas empresas-aplicativos cresceu. Afinal, com o aumento do desemprego, iniciou a Era dos Bicos no mercado de trabalho. O Brasil segue batendo, ano a ano, sucessivos recordes históricos: a taxa de informalidade superou o patamar de 41%, a maior proporção desde 2016, quando o IBGE passou a investigar esse índice. Ou seja, de cada 10 trabalhadores ou empregadores, quatro estão atuando na informalidade.

Perfil político

Com seu foco sobre motoristas, Moda afirma que a maioria vem de empregos perdidos e têm condições de comprar um carro, embora estejam em condição financeira de classe média baixa. Geralmente, têm formação superior. Levantamento da Aliança Bike, por outro lado, mostra que os entregadores são jovens mais pobres ainda exercendo o primeiro emprego.

Além disso, entre entregadores existe hierarquia entre carros, motos e bicicletas que perpetuam-na. Com a condição melhor de uns, a empresa oferece melhores entregas, deixando as piores para as bicicletas, por exemplo. Os parcos recursos recebidos frequentemente são investidos na possibilidade de comprar uma moto, ou um carro.

O pesquisador prefere não generalizar conclusões políticas sobre os motoristas, embora observe um perfil à direita do espectro político, mesmo entre representantes da categoria, talvez por desilusão com governos de esquerda, mais do que por vínculo com ideias de direita. O trabalho solitário e competitivo também estimula a falta de laços solidários.

Outra observação é de que no boom das empresas de aplicativo, havia uma euforia positiva em torno. Com a maturação da rotina de trabalho, começam a surgir questionamentos e reclamações contra elas. Com relação a entregadores, ele desconhece trabalhos mais aprofundados sobre postura política.

O diálogo patronal

Ele relata que existe um sindicato dos motoristas, mas existem também inúmeras associações locais, que buscam oferecer algum tipo de apoio material, como locais de descanso, e organizativo para os trabalhadores. Algumas cobram mensalidade e são articuladoras de mobilizações, por exemplo. Embora não tenha conhecimento sobre a realidade organizativa dos entregadores, Moda avalia que eles se encontram e dialogam mais do que os motoristas, o que sinaliza para algum tipo de organização.

Por outro lado, existem canais de comunicação entre trabalhadores e empresas de aplicativo. Isso favorece o encontro de lideranças dos motoristas e troca de impressões, assim como contribui para que as empresas estejam cientes dos problemas mais comuns dos trabalhadores.

No entanto, esses canais revelam a falta de transigência das empresas, que dificilmente cedem em questões salariais e custos. Mas Moda ressalta a importância da luta contra a violência, ocorrida em 2019, quando houve uma explosão de assassinatos e roubos por usuários do aplicativo. Em um mês houve cinco assassinatos seguidos de motoristas.

Isso levou à unificação das associações, que conseguiram audiência pública com participação das empresas pensando soluções conjuntas. O aumento da vigilância de motoristas e usuários tem um lado perigoso, mas a maioria vê com bons olhos as medidas. Há empresas que exigem foto de documento do usuário para evitar contas falsas.

Perfil do usuário

Uma surpresa da pesquisa diz respeito ao perfil periférico do usuário de Uber. Embora se imaginasse que houvesse concentração em áreas de maior poder aquisitivo, é na periferia que mais se usa Uber, diz o sociólogo. Ele explica que nas regiões centrais, a disponibilidade de transporte público como metrô possibilita abrir mão do Uber, enquanto na periferia os motoristas alegam que “é onde mais toca” para corridas rápidas nas proximidades. As pessoas descem do ônibus em baixadas e usam o aplicativo para subir ladeiras, por exemplo.

Por isso, motoristas consideram que têm um papel importante na descentralização do transporte público da cidade. Moda acredita que é preciso repensar os motivos do sucesso dos motoristas de aplicativo, pela baixa qualidade do transporte coletivo na cidade, escasso e caro. Andar de carro a preços mínimos acaba garantindo a expansão dessa opção, principalmente quando até três pessoas ocupam o mesmo carro.

No caso dos entregadores isso pode se inverter. A concentração maior desses trabalhadores é visível em regiões centrais onde estão os restaurantes, por exemplo. Não tão descentralizado, é possível ver alguma presença desse serviço nas periferias, também.

A legalização da informalidade

Embora façam deslocamentos ou entregas, nenhuma dessas empresas estão registradas como tal. Moda diz que elas burlam a legislação trabalhista se registrando como parte do setor de tecnologia. Seriam apenas empresas de tecnologia cuja função é a manutenção de plataformas eletrônicas que permitem a trabalhadores autônomos encontrarem consumidores para seus serviços. Assim, elas não conteriam relações trabalhistas, pois os entregadores não são funcionários do iFood, pois a empresa não faz entregas, apenas faz a mediação entre entregador e consumidor.

Essa brecha legal foi determinante para entrar em diversos países, como no Brasil. No Brasil, a regulamentação reconheceu esta atividade proposta pelas empresas. O debate começou nas cidades, com São Paulo se adaptando à uberização bem antes do Rio de Janeiro, por exemplo, mas o debate sobre relações de trabalho avançou para o nível federal. As cidades, agora, se preocupam em incorporar as empresas à sua lógica tributária, entre outros aspectos, como o limite de motoristas para cada cidade, por exemplo.

Alguns países simplesmente proibiram esse tipo de empresa, enquanto França e partes dos EUA, como a Califórnia (local de origem das empresas) exigiram o vínculo das empresas com seus empregados motoristas, garantindo direitos, e avançando na regulamentação, ao contrário do Brasil. Os entregadores vieram nesse mesmo bojo da brecha legal, tornando muitos outros aplicativos viáveis, como professores de inglês, cuidadores de cães, aluguel de imóveis, médicos, etc.

Moda ressalta que, devido ao caráter histórico do trabalho informal no Brasil, numa reunião mundial de associações e sindicatos de motoristas de aplicativo em Londres, ao definir uma carta exigindo o vínculo formal entre motoristas e empresas, o representante brasileiro foi o único que não assinou por considerar que esta não era uma reivindicação nacional.

Para provar isso, ele deixou uma enquete em sua página de Facebook e surpreendeu os congressistas de Londres pelo engajamento dos brasileiros. Em um dia, dez mil motoristas disseram majoritariamente não à reivindicação de vínculo com CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) às empresas. Moda avalia que os motoristas associam registro em carteira com baixos salários.

Já o aumento de ganhos é algo que mobiliza esses trabalhadores. Têm que constantemente fazer as contas devido ao aumento do preço da gasolina, ou do desemprego da população usuária, por exemplo. Muitos dizem que trabalham seis horas para ganhar um determinado valor, e agora precisam trabalhar o dobro para obter o mesmo valor. Assim como a violência foi a pauta reivindicatória antes, a melhora nos ganhos é a pauta atual.

O sociólogo também aponta que a consolidação do vínculo trabalhista seria importante, porque as empresas não apenas mediam relações. Os trabalhadores realmente estão subordinados a estas empresas, pois não conseguiriam realizar seu trabalho sem o aplicativo. Portanto, para ele, há simplesmente uma falta de vontade política para regulamentar esse vínculo.

A pandemia

Moda não é muito otimista sobre mudanças positivas para esse mercado de trabalho devido ao impacto da pandemia de covid-19. Qualquer cenário positivo, acredita ele, vai depender do nível de organização dos trabalhadores.

Por um lado houve um grande reconhecimento da importância desses entregadores neste período, com a percepção de que eles fazem parte da estrutura funcional da cidade, visibilidade que lhes era negada. Eram as pessoas que atrapalhavam o trânsito e incomodavam. Agora, há uma sensibilidade social para o papel deles, apoio que é fundamental para suas suas reivindicações.

Mas Moda duvida que a pandemia pode melhorar naturalmente a situação dos entregadores e motoristas. Pelo contrário, além dos riscos sanitários de se expor ao contágio pelo SARS-CoV2, as condições financeiras estão piorando, pois no caso dos motoristas o volume de corridas caiu e o risco da epidemia faz que muitos nem saiam de casa. Motoristas só recebem se aceitarem corridas. Se ficam parados, gastam gasolina, tempo, alimentação, etc, e acabam pagando para trabalhar. Os ganhos que já não eram bons, caíram pela metade, alegam

Quanto aos entregadores, é ilusório achar que estão trabalhando e ganhando mais com a pandemia. Moda explica que a oferta de mão de obra aumentou extraordinariamente, fazendo com que muitos entregadores demorem muito para receber chamadas. Isso implica em perda de ganhos, também. Desta forma, o pesquisador acredita que, até agora, a pandemia não trouxe nada de positivo para estes trabalhadores, mas certamente favoreceu as empresas, como revelam dados contábeis divulgados por jornais.

A “ajuda” das empresas

Segundo Moda, as empresas fingem proteger os funcionários implementando ações baratas: medição da temperatura de entregadores e distribuição de álcool em gel e máscaras. As plataformas dizem montar um fundo de auxílio para garantir a renda dos entregadores infectados. Porém, observando de perto, este auxílio representa apenas 14 dias de trabalho, e o valor destinado a cada funcionário ainda não foi divulgado.

Uma decisão liminar recente da Justiça do Trabalho de São Paulo determinou que iFood e Rappi garantam assistência financeira, de um salário-mínimo, e materiais de higienização a entregadores contaminados pelo coronavírus e aos que fazem parte do grupo de risco. Além disso, solicitou que pensem em medidas que diminuam os riscos de contágio junto aos estabelecimentos tomadores do serviço, como locais de retirada de mercadorias com menor contato social. Em 24 horas, a decisão foi derrubada.

Resistências

O pesquisador aponta que uma postura é patente entre os que trabalham por aplicativos: a recusa da carteira assinada. Cita um caso emblemático: em uma assembleia internacional, o representante dos motoristas de Uber do Brasil foi o único a se recusar a assinar um pedido pela formalização dos trabalhadores por aplicativo – e foi amplamente apoiado pela categoria.

Para Moda, mesmo após a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na década de 1940, boa parte da população brasileira sempre sobreviveu de trabalhos não regulados pelo Estado, o que contribuiu para o mito de que autônomos, mesmo precarizados, são “seres livres e independentes”.

Mas há organização. Moda aponta que diversas associações de trabalhadores por aplicativos surgiram, nos últimos anos, em São Paulo. O principal canal de agitação são os grupos de WhatsApp, mas as lideranças também promovem assembleias e negociações com os “patrões”. As empresas-aplicativos se mostram dispostas a dialogar, inclusive enviando representantes, mas são intransigentes nas negociações – e quase nunca cedem. Diversas tentativas de paralisações e greve são realizadas. É uma categoria que começa a se organizar. Assistiremos, em breve, a Grande Greve dos Uberizados?