Ode aos mártires de Rio Grande no 1º de Maio

Este 1º de Maio registra os 70 anos do assassinato, pela polícia, a balaços, em 1950, na cidade portuária de […]

Enterro dos operários assassinados em 1950

Este 1º de Maio registra os 70 anos do assassinato, pela polícia, a balaços, em 1950, na cidade portuária de Rio Grande, de quatro valorosos militantes do Partido Comunista do Brasil – a tecelã Angelina Gonçalves, o portuário Honório Couto, o ferroviário Osvaldino Correia e o pedreiro Euclides Pinto –, que participavam das manifestações do Dia Internacional dos Trabalhadores e reivindicavam a reabertura da “União Operária”, fechada há oito meses pelo Ministro da “Justiça”.

Além desses quatro mortos, o líder portuário e vereador comunista Antônio Rechia foi baleado na coluna, ficando paraplégico. Diversas outras lideranças operárias foram baleadas, entre as quais os operários Oswaldino Borges D’Ávila e Amabílio dos Santos. Nessa ocasião, governava o Rio Grande do Sul o ex-juiz e ex-promotor Walter Jobim, do PSD…

No dia seguinte – apesar da forte repressão – uma massa compacta de trabalhadores acompanhou o enterro dos operários, usando suas golas levantadas, para simbolizar o seu apoio àqueles mártires e às suas causas.

Segundo os registros dos jornais de então, o cortejo reuniu mais de cinco mil pessoas, número expressivo para a época.

Referindo-se ao massacre dos operários riograndinos, a jornalista Arcelina Mochel, do jornal comunista Voz Operária (27.05.50) conclama: “Que em cada coração de mulher, o sentimento de amor à vida, à liberdade e à paz se intensifique com o exemplo de Angelina Gonçalves – líder inesquecível do proletariado brasileiro, que deu sua vida para deixar ao mundo o traço de união entre as mulheres das fábricas e as camponesas, entre as operárias e as donas de casa, porque todas sofrem igual miséria e todas merecem uma vida feliz num mundo de dignidade, justiça, progresso e paz. (…) Sobre a terra fria que cobre o corpo heróico de Angelina, juramos vingança e entoamos o hino de despedida, num vibrante chamado a todas as mulheres para a mais poderosa união e fraternidade proletária.”

E o jornalista e historiador João Batista Marçal – em seu livro “Dicionário ilustrado da Esquerda Gaúcha“ (2008) – traça o perfil de Angelina Gonçalves (1913-1950): “Tecelã e líder de sua categoria. Militante Comunista. Operária desde os nove anos de idade na fábrica Rheingantz de Rio Grande. Uma vida inteira de sofrimento e exploração. Entrou para o PCB em 1934

Na passeata de 1º de maio de 1950, carregava a Bandeira Nacional – ao seu lado, a filha Schirley, de 10 anos de idade. Quando estourou a fuzilaria – polícia e Brigada metralhando o povo – Angelina vacilou por um breve instante entre proteger a filha e conservar a bandeira. A polícia toma-lhe o pavilhão nacional. Angelina protege a filha com o corpo. Avança alguns passos e retoma a bandeira das mãos da polícia. Quando recua, recebe um balaço na nuca. Morre instantaneamente. Suas últimas palavras: ‘Não temam companheiros’.”

A poetisa Lila Ripoll celebrizou esse pérfido massacre dos operários riograndinos no seu poema “Primeiro de Maio”, publicado pela primeira vez em 1954, nos “Cadernos” da Revista Horizonte, editada pelos comunistas gaúchos e reproduzido abaixo.

Em homenagem ao Dia Internacional dos Trabalhadores, comemorado no dia 1º de maio, compartilho essa pungente e belíssima poesia de Lila Ripoll, certamente a maior poetisa do Rio Grande do Sul.

Primeiro de Maio, por Lila Ripoll

Festejo

Foi num primeiro de maio,
na cidade de Rio Grande.

O céu estava sem nuvens.
O mês das flores nascia.

O vento lembrava as flores
no perfume que trazia.

O povo reuniu-se em festa
pois a festa era do povo.

Crianças, homens, mulheres,
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.

O mês das flores nascia
e o vento lembrava as flores
no perfume que trazia.

Foi num primeiro de maio,
de pensamento profundo.

“Uni-vos, ó proletários,
ó povos de todo o mundo”.

Unido estava em Rio Grande,
o povo simples cantando,

No peito de cada homem
uma esperança se abria.
Em qualquer parte do mundo
uma estrela respondia.

Era primeiro de maio
dia da festa do mundo.

O velho parque esquecido
tinha um ar claro e risonho.
Germinava no seu peito
o calor de um novo sonho.

Misturavam-se cantigas,
frases, risos, alegrias.
No peito de cada homem,
um clarão aparecia.
Surgiam jogos e prendas,
hinos subiam ao ar.
Em cada grupo uma história
alguém queria contar.

A tecelã Angelina,
vivaz e alegre cantava,
Recchia – o líder operário
ria e confraternizava.

Era primeiro de maio,
dia de festa do mundo.

Foi quando a voz calma e séria,
no velho parque vibrou,
e um convite alvissareiro
o povo unido escutou:

“Amigos, a rua é larga.
Unidos vamos partir.
A nossa ‘União Operária’
nós hoje vamos abrir.”

No peito de cada homem
Um clarão aparecia.
Em qualquer parte do mundo,
uma estrela respondia.

“A casa de nossa classe,
fechada por que razão?
Amigos, vamos à rua,
e as portas se abrirão.”

A onda humana agitou-se,
Cresceu em intensidade.
Em coro as vozes subiram
clamando por liberdade.

“Á rua, à rua, sem medo,
unidos, vamos marchar.”

Foi como se uma rajada
De vento encrespasse o mar.

Passeata

Sem demora, a passeata organizou-se.
Rompeu-se a indecisão.

Um sopro audaz passava em cada rosto,
onde os olhos falavam com estrelas,
na densa escuridão.

Espontâneas as filas se formaram
e ergueram-se a cantar.

Nas mãos erguidas, lenços tremularam,
impacientes também para avançar.

  • Quem vai na frente? Quem? disseram vozes.
    E três vultos surgiram, decididos.
    Eram pedreiros uns. Outros portuários.
  • Recchia, Osvaldino, Honório, Euclides Pinto –
    e também Angelina, a tecelã.

  • E a passeata iniciou-se: “Adiante, amigos
    Avancemos sem medo. A rua é nossa.”
    Ouviu-se a voz sonoramente clara,
    indicando o caminho a percorrer.

Decididos, os passos ritmados
marcaram os primeiros movimentos.

Punhos fechados,
lenços agitados,
e o vento acompanha o movimento
da marcha triunfante.

“A Bandeira na frente, companheiros”,
e Angelina surgia, erguida fina,
tocada pela luz da tarde mansa,
como um vivo estandarte a caminhar.

Os passos ritmados,
batiam sem cessar.

“Viva a classe operária. Salve. Viva!”
Era o coro das vozes a clamar.

Como um pássaro verde, muito verde,
a Bandeira voava,
revoava,
por sobre o mar humano a se espraiar.

Flutuavam lenços, mãos gesticulavam.
Vozes subiam animando a marcha.
E as filas andavam sem parar.

A “União” já estava quase a aparecer
e os punhos se fechavam.
Um sopro audaz passava em cada rosto.,
onde os olhos brilhavam.

“Viva a ‘União’, companheiros, viva o povo”.
E a voz interrompeu seu entusiasmo
e um silêncio caiu, inesperado.

E logo uma palavra subiu clara,
atravessando homens e mulheres,
como um fino punhal.

“A polícia, a polícia, companheiros”.
E houve um leve arquejar. E alguém falou:
“Avançar, companheiros, avançar.”
Era Recchia investindo desarmado
E a onda contida transbordou.

A massa resiste,
rebelde,
indomável,
erguendo muralhas,
de peitos e braços,
às frias espadas,
aos altos fuzis.

A rua tranquila,
tão cheia de cantos,
encheu-se de cinza,
de sangue e de pó.

O povo resiste
e os tiros aumentam.
Protestam as vozes
Num vivo clamor.

Respondem espadas,
fuzis apontados,
fuzis metralhando.

A massa recua,
retorna e avança
com novo vigor.

Na rua estendidos,
Euclides e Honório,
e mais Osvaldino,
fecharam seus olhos,
seus lábios calaram.

As vagas aumentam
de ódio incontido.
E há novos protestos
do povo ferido.

Alguém arrebata
das mãos de Angelina
a verde Bandeira
que ondula no ar.

Os tiros procuram
o peito de Recchia.
E os tiros ficaram
no peito a morar.

Os olhos dos homens
refletem angústia,
revelam paixão.

Ferido está Recchia,
e há sangue no chão.

Ninguém junto ao leme,
ninguém no comando.
Vermelhas papoulas
matizam o chão.

O rosto em tormento,
cabelos ao vento,
retorna Angelina,
mais alta e mais fina.

“A nossa Bandeira,
nas mãos da polícia?”

E à luta regressa,
com febre no olhar.

Os braços erguidos,
subiam, caiam,
em meio a outros braços,
o mastro a arrastar.

E às mãos vitoriosas,
num breve momento,
retorna a Bandeira
batida de vento.

Um frio estampido
correu pelo espaço,
na rua vibrou.

Vacila a Bandeira,
vacila Angelina,
e a flor de seu corpo
na rua tombou.

Amanhã

Morreram? Quem disse, se vivos estão!
Não morre a semente lançada na terra.
O frutos virão.

Morreram? Quem disse, se vivos estão!
As flores de hoje darão novos frutos.
Meus olhos verão.

Num dia, tão certo, tão claro, tão perto,
verei pelas ruas o povo ondulando,
Marchando a cantar.

Nas mãos estandartes, a febre nos olhos,
nos lábios palavras de claro sentido:
“Poder Popular!”

Figuras do povo nos grandes cartazes –
Euclides e Recchia, Honório, Angelina –
que grande emoção!

As flores caindo das altas janelas,
floridas também. E as palmas ecoando
no meu coração!

O nome de Prestes, num ritmo exato,
por todos cantado, sonoro, sem manchas,
na tarde a vibrar.

As flâmulas altas, de cores variadas,
nos mastros subindo, descendo, ondulando,
e o vento a girar.

Mistura de vozes – de velhos, crianças,
de homens e mulheres, do povo nas ruas,
do povo a cantar.

A grande alegria caindo dos olhos,
das vozes das flores, do dia sem nuvens:
“Poder Popular!”

Num dia, tão perto, tão claro, tão certo,
meus olhos verão.

Não morre a semente lançada na terra.
Os frutos virão!

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