Por que nós, negros, devemos falar do Imposto sobre Grandes Fortunas

É a primeira vez desde a Constituinte de 1988 que há disposição no Congresso e clima favorável para que o IGF seja regulamentado e implantado

No último dia 13, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo iniciaram a campanha “Taxar Fortunas para Salvar Vidas”. Essa importante iniciativa se baseia em cinco propostas:

  • A taxação de lucros e dividendos das pessoas físicas detentoras de cotas e ações de empresas;
  • A instituição de alíquota sobre os lucros remetidos ao exterior;
  • A cobrança do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal;
  • A maior efetividade à cobrança do Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), atualizando os valores das grandes propriedades que estão totalmente defasados;
  • O empréstimo compulsório das empresas com patrimônio superior a R$ 1 bilhão.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 1% da população brasileira – o 1% mais rico – concentra 28,3% da renda total do País. Com isso, o Brasil é o segundo lugar na lista de países com maior concentração de renda, atrás apenas do Catar, onde o 1% mais rico detém 29% da renda total.

Mas de onde vem toda essa riqueza e concentração de renda? O discurso liberal com certeza vai dizer que é fruto do trabalho dos milionários – mas sabemos que não é bem assim. Para entender o processo de formação da elite econômica brasileira, é preciso recorrer um pouco à nossa história e à sua principal marca – os vergonhosos mais de 300 anos de escravidão.

A história oficial vai dizer que a abolição da escravidão no Brasil foi um processo pacífico e negociado. No entanto, essa narrativa esconde um fato: a elite brasileira, encurralada pelas inúmeras rebeliões dos escravizados em todo o país e pelo crescimento do movimento abolicionista, forjou um processo de transição que lhe permitiu aproveitar do extrato das relações de trabalho escravistas na formação das bases para o capitalismo moderno.

Um marco importante dessa história é o ano de 1850, quando foram instituídas duas leis fundamentais para essa transição.

A primeira delas é a Lei de Terras, que transformou a posse da terra de concessão do Estado em propriedade privada e praticamente cristalizou a estrutura social do Brasil. Os donos das grandes fazendas de trabalho escravo preservaram sua riqueza mesmo no processo de transição para o trabalho livre.

Também do ano de 1850 é a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de negros escravizados no território nacional. Essa lei abriu caminho para que os recursos antes investidos no modo de produção escravista fossem, pouco a pouco, transferidos para o processo de modernização necessário ao estabelecimento do capitalismo no Brasil.

Clóvis Moura, um dos maiores especialista na história negra, destaca que, em 1888, ano da abolição do escravismo, o Brasil já tinha “iluminação a gás, cabo submarino, estradas de ferro escoando para os portos de embarque o produto conseguido com o trabalho escravo, telefone, transporte coletivo com tração animal, bancos estrangeiros, pequenas fábricas de trabalho livre, organizações operárias”. Nada disso impediu que as instituições continuassem “arcaicas e congeladas”. O motivo: elas “representavam a ordenação ideológica, jurídica e costumeira dos interesses daquelas classes que detinham o poder e simbolizavam a elite dominante, articuladas através de uma série de mecanismos para preservar o tipo de propriedade fundamental da época”.

Em 2019, mais de 130 anos após a abolição, a população negra (maioria da população) representa apenas 27,7% da parcela dos 10% dos brasileiros com maiores rendimentos. Por outro lado, entre os 10% com rendimentos menores, somos 75,2%. É o que aponta o informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Embora conste na Constituição Federal desde 1988, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) até hoje não foi regulamentado. Isso porque é um assunto que sempre gera acalorados debates e principalmente desperta o medo da elite de perder parte dos seus privilégios.

No Senado Federal, tramitam quatro projetos de lei que tratam do tema. O mais antigo deles é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 315/2015, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que está parado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) desde 2018. O projeto que hoje reúne mais condições para ser votado é o Projeto de Lei Complementar (PLP) 183/2019, de autoria do senador Plínio Valério (PSDB-AM), cujo relatório está pronto para ser votado na CAE, de onde seguirá direto para a votação em plenário.

Com base na tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), a proposta prevê uma alíquota de 0,5% a 1% sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22.847.760. Esse valor equivale a 12 mil vezes o limite para isenção do imposto de renda e tem perspectiva de arrecadar de R$ 70 bilhões a R$ 80 bilhões por ano.

O relatório do senador Major Olímpio (PSL-SP) sugere duas modificações ao projeto. A primeira diz respeito à destinação desses recursos. Conforme o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), os recursos do IGF deveriam ser destinados ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. No entanto, o relatório destinar 50% dos recursos para o Fundo Nacional de Saúde (FNS), 25% para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e 25% para o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza.

A segunda – e mais importante – sugestão diz respeito à duração do imposto. O relator propõe um imposto provisório com duração de dois anos. Sua justificativa é garantir a votação do projeto nesse momento de grave crise que o Brasil vive, com o enfrentamento ao coronavírus, bem como a seus impactos na economia e no sistema público de saúde. A prorrogação do projeto poderia ser discutida com mais tempo no futuro.

É a primeira vez desde a Constituinte de 1988 que há disposição no Congresso e clima favorável para que o IGF seja regulamentado e implantado. Essa crise impõe a todo o mundo a urgência de repensar a organização da sociedade. No Brasil, abre-se com esses projetos a oportunidade de colocar para a sociedade a necessidade e um meio de repensar a concentração de renda que nos marca desde o escravismo.

Para aderir ao abaixo-assinado da campanha “Taxar fortunas para salvar vidas”, clique no link:
https://www.change.org/p/taxar-fortunas-para-salvar-vidas

Participe da consulta pública do Senado sobre PLP 183/2019:
https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=137929

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Um comentario para "Por que nós, negros, devemos falar do Imposto sobre Grandes Fortunas"

  1. Lenner disse:

    Mas com o imposto sobre grandes fortunas, não faria com que os ricos saissem do país, retirando seus investimentos e empreendimentos, fazendo com que os empregados agora fiquem desempregados e retira o investimento, assim fazendo o país não crescer e ,na realidade, entrar em recessão por falta de investimento?

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