Martinha do Coco: voz do cerrado e da resistência

Marta Leonardo chegou a Brasília aos 17 anos vinda de Olinda. De suas lutas e vivências nasceu a arte presente em seu samba de coco.

Martinha do Coco - Foto: Milena Argenta

Esse coco é do cerrado feito JK/Essa flor é do cerrado, olha o tamanduá/Da Ermida eu vejo um lago que parece mar/Da Ermida eu vejo um lago, mas parece um mar/Vai chover, vai secar, vai chover, vai secar

Os versos de Coco do Cerrado, de Martinha do Coco, mestra da cultura popular do Distrito Federal, carregam a vivência de quando ela era Marta Leonardo de Oliveira, recém-chegada de Olinda, Pernambuco. Encantada pelo Lago Paranoá e pelas belezas do cerrado, sofria ora com o frio, ora com os lábios rachados de secura. Marta tinha apenas 17 anos quando subiu em um ônibus com os irmãos para virem encontrar a mãe, que trabalhava como empregada doméstica em Brasília.

De Pernambuco e da infância, trouxe a familiaridade com o samba de coco – uma dança de roda, cujo ritmo contém traços indígenas e influências africanas – e com todo tipo de ritmo e festejo popular. “Eu sou de vários carnavais. Samba de coco, São João, Festa do Pastoril”, conta.

Uma de suas lembranças mais antigas é brincar o carnaval na periferia de Olinda. “Os bairros periféricos comemoram tudo. Então, desde criancinha eu tive esse contato com a cultura popular. Minha mãe trabalhava de empregada doméstica em Recife e minha tia levava a gente. Lembro até hoje de minha madrinha arrumando a gente para o baile de carnaval”, recorda.

Outra memória dos tempos de menina: estar sempre mudando de casa. A família morava de aluguel e não tinha pouso certo, especialmente na época da cheia. “Lembro a água no meio do joelho e a gente esperando minha mãe. Ela vinha, levava a gente no braço, tentava levar algumas coisas [da casa]. Tinha uma malinha de documentos que era a primeira coisa que ela pegava”.

As influências de Martinha do Coco: infância, Pernambuco e cerrado – Foto: Leo Pacheco

Brasília

Um dia, a família para quem a mãe trabalhava fez a proposta de mandá-la para Brasília, acompanhando uma filha que ia se casar. “Minha mãe foi muito sábia e aceitou. Na época, todo mundo em Recife queria ir para São Paulo. Ela foi para Brasília. Deixou os cinco [filhos] tudo com minha madrinha. Ficou uns três anos. Até que o pessoal ajudou ela, comprou as passagens e a gente veio tudo para cá”, relembra Martinha.

Mas não foi um reencontro em toda a extensão da palavra. Assim como em Pernambuco, os filhos continuavam a maior parte do tempo longe da mãe. “A minha mãe não tinha casa ainda. Só o meu irmão de nove anos ficou morando com ela [na casa dos patrões]. A minha irmã de 13 anos ficou com um casal que tinha uns cachorrinhos. Levava os cachorros para passear, ajudava. E eu e minha irmã de 22 anos fomos para outra casa. A gente trabalhava ela de cozinheira, eu de copeira”.

Trabalhando para a irmã da patroa da mãe em um apartamento na Asa Sul, Martinha e a irmã mais velha tiveram um duro período de adaptação à cidade, ao clima, às tarefas domésticas.

“Ela chorava todo dia. Eu chorava de vez quando. Quando chegamos, era época de frio. Em 1979 essa cidade era um frio, frio de você ter que pôr casaco de lã o dia inteiro. Todo o nosso sistema, o nosso ser, era acostumado com aquele calor de Olinda. Era frio de a pele descascar”, conta. A família só se reunia completa a cada 15 dias. O lugar do encontro? A Rodoviária do Plano Piloto.

Samba de coco: uma dança de roda – Foto: Milena Argenta

Grande como um mar

De lá, partiam de ônibus para passear – passeio escolhido pela mãe, planejado com antecedência. As folgas eram aos domingos, os ônibus eram poucos. Era preciso cronometrar o tempo. “Ela olhava na semana, durante esses 15 dias, os ônibus para planejar. Água Mineral, Ceilândia, Ermida Dom Bosco. Até chegar no lugar já tinha ido quase metade da folga. E tinha que voltar a tempo”, recorda Martinha. A primeira visita à Ermida inspiraria, anos depois, os versos de Coco do Cerrado. “[Ao ver o Lago Paranoá] eu falei:‘Nossa, mãe, é tão grande, parece mar’”, relata a compositora.

Os passeios quinzenais eram o ponto alto para Martinha. Mas, durante a semana, não se sentia feliz. Detestava o trabalho de copeira. “Essa história de copeira, de camareira era muito lençol, muito edredom, muita confusão. O que eu sabia de etiqueta, de servir na mesa? Eu olhava pela janela [do apartamento], as meninas que nem eu com uma cara mais feliz. E, para completar, minha irmã mais velha voltou para Pernambuco. Ficou seis meses aqui e voltou. Conversei com as pessoas e a maioria era babá. Eu botei na cabeça que eu queria ser babá”, recorda.

Não foi fácil deixar a casa. Diziam-lhe que o parentesco entre a patroa e a patroa da mãe obrigava a qualquer coisa como lealdade, gratidão. “Minha mãe dizia que eu ia matar ela de vergonha”. Depois de muito insistir, conseguiu e benção materna. Pediu demissão e começou a se oferecer de porta em porta como babá no Lago Norte, bairro onde a mãe trabalhava. Conseguiu ser contratada. Cuidava de quatro crianças. A melhor coisa no novo emprego? Os banhos de piscina com a garotada.

Martinha, mestra da cultura popular – Foto: Milena Argenta

Martinha do Paranoá

Martinha continuou morando em casa alheia até o início da década de 90, quando o anseio de toda uma vida se tornou enfim realidade: uma casa para a mãe, casa própria. Mas não veio fácil. Ela e a família se engajaram no movimento de luta por moradia. A ocupação das terras em volta da zona central de Brasília, com reivindicação de regularização, marcou a formação do Distrito Federal.

“Primeiro, foi invasão do Paranoá, era fixado lá na barragem [do lago]. Subiu, saiu da barragem e veio aqui para perto. A ideia dos governantes era acabar com o Paranoá, mas não contavam com essa resistência dos moradores. Aí, minha mãe foi contemplada com um lote nos anos 90, veio todo mundo morar com ela. Com filho, com neto, fez barraco de madeirite, cada um tinha o seu cantinho”, lembra. No Paranoá, Martinha trabalharia como gari e se tornaria Martinha do Coco.

Em meio ao trabalho e às aulas para terminar o ensino médio, conheceu o grupo Tambores do Paranoá, levada por uma sobrinha. “Eu estava na Feira da Economia Solidária, eles fizeram uma apresentação. Aí eu fui para os Tambores. Onde eu ia era felicidade, convidava todo mundo. Minha mãe recebeu a honra de ser Rainha do Maracatu, porque era a pessoa mais velha do grupo. O bom da cultura popular é que você pode enfiar a família toda. Aí virou essa família de batuqueiros”.

Martinha, no entanto, logo foi além do maracatu. “Depois do ensaio, ficávamos ali tocando e surgiu a presença ilustre do pandeiro. Maracatu não tem pandeiro. Da outra vez que eu fui, já levei um samba de coco. Retratava o que eu já vivi aqui. Era Coco do Cerrado”, conta.

Hoje, atando as duas pontas da vida – Marta Leonardo, a menina de Olinda, e Martinha do Coco, mestra da cultura do cerrado – Martinha conclui que uma não teria existido sem outra. “Um dia alguém me perguntou: ‘Se você estivesse em Pernambuco, seria Martinha do Coco?’. Eu acho que não, porque eu não teria a vivência que eu tive. Eu jamais ia imaginar, quando fiz a mala, que além de guardar minhas coisinhas eu ia trazer minha cultura”. Mestra é quem imprime alma à cultura.

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