Nicolelis prevê cataclismo histórico se negacionismo continuar

Nicolelis ressaltou a importância da ciência nesse momento de crise. Lamentou o modo como políticos subestimam o vírus em plena guerra biológica. Sua recomendação é antecipar o ataque ao vírus na casa das pessoas, em vez de esperá-las chegar nas UTIs lotadas para começar a agir.

Miguel Nicolelis falou de sua contribuição ao consórcio de cientistas montado pelos governadores do Nordeste para enfrentar a Covid-19, em entrevista à Globonews.

Novo coronavírus ameaça os sistemas de saúde dos estados do Nordeste. Secretários de saúde temem que capacidade de atendimento possa entrar em colapso a partir de maio. Em todo a região Nordeste são 5.252 casos confirmados e 339 mortes, sendo que o Ceará tem o maior número de casos (2.010) com 111 mortes, no momento. A taxa de letalidade é mais alta do que se esperava com 6,45% dos casos.

Para tentar entender os efeitos e as ações de combate ao Covid-19 na região, governadores formaram um comitê científico. Entre os membros está o neurofisiologista e cientista brasileiro Miguel Nicolelis, que concedeu entrevista à Globonews, na manhã desta quarta-feira (15).

Nicolelis ressaltou a importância da ciência nesse momento de crise. Lamentou o modo como políticos subestimam o vírus em plena guerra biológica, o que pode levar a um cataclismo de mortes. Ele enfatizou a necessidade de assumir que é hora de salvar as pessoas e deixar a economia pra depois. Todo o investimento deve ir para o SUS, que ele considera a maior arma do Brasil contra a guerra biológica. Sua recomendação aos governadores será de antecipar o ataque ao vírus nas comunidades, nas casas das pessoas, em vez de esperá-las chegar nas UTIs lotadas para começar a agir.

Leia a íntegra da entrevista do cientista:

Você deu uma entrevista em que dizia que ia deixar suas pesquisas para se dedicar exclusivamente a ações de combate a esse vírus no Brasil, tentando convencer os brasileiros da importância da ciência e da gravidade desse vírus.

É preciso resgatar a ciência, que é uma das melhores ferramentas e armas que temos disponíveis para combater nessa guerra. Esta é uma verdadeira guerra. No Brasil é difícil convencer as pessoas, mas o mundo inteiro já se convenceu disso.

Você acreditava que em locais mais quentes como o Nordeste, a taxa de infecção talvez não fosse tão alta. Infelizmente, não vemos números razoáveis na região, inclusive em regiões quentes e úmidas como no Amazonas. Que avaliação você faz nesse momento olhando para a região?

Eu mencionei a hipótese que existia nos EUA, por parte de alguns pesquisadores, que tinham essa esperança de que talvez em zonas tropicais, nessa primeira onda, que não vai ser a última, que o calor e a umidade pudesse ser uma proteção. Mas até agora, não temos uma confirmação clara. Estou assistindo de perto o colapso de Manaus, é uma coisa muito assustadora. Só o fato de ter criado essa comissão científica com as melhores mentes do Nordeste e do Brasil, nos permite discutir esse tipo de questão. Essa hipótese não está sendo demonstrada, está sendo revogada. Na verdade, a situação do Nordeste é muito grave com números assustadores de óbitos.

Qual a melhor estratégia da ciência para conhecermos esse inimigo e não ficarmos apenas na defensiva de lavar as mãos, se proteger, ficar em casa. Quando é que a gente vai poder partir para o ataque?

Para fazer isso, a ciência precisa ser posta em primeiro plano. A ciência tem que ser reconhecida como a arma mais poderosa para que a humanidade saia da defensiva, arme o contra-ataque e siga em frente. Eu tenho dito que toda vez que os políticos bateram de frente com a biologia, a biologia ganhou de goleada. A Então, primeira coisa é reconhecer o estado de guerra e, nesse momento, países do mundo inteiro não estão pensando em dinheiro, em ajuste fiscal, em orçamento, mas em jogar tudo aquilo que têm na ciência, na medicina, e outras armas, para vencer uma pandemia que é a maior em cem anos. O problema é que nós estamos cometendo os mesmos de 1918, com a gripe espanhola.

A ciência, nesse momento, está jogando tudo que tem, e nós, do Comitê do Nordeste, fizemos a mesma coisa. Recrutamos cientistas de múltiplas áreas, criamos nove grupos de trabalho, absolutamente variados, cobrindo todas as dimensões dessa guerra. Esta é uma guerra biológica multidimensional. Se as pessoas não conseguem comer, elas vão ficar mais doentes, se as pessoas estão aglomeradas em grupos de altíssima densidade populacional, elas vão ficar mais doentes. Se nós não tivermos médicos suficientes para ir nas casas, nas comunidades, na linha de frente, as pessoas vão ficar mais doentes.

O sistema de saúde do Brasil, em particular do Nordeste, não tem capacidade para um fluxo de centenas de milhares de casos, tudo ao mesmo tempo. Então, primeiro temos que seguir a receita natural do método científico. Temos que fazer as perguntas chave: quem é o inimigo, como nos ataca, como pode ser derrotado, quais as melhores formas de proteger a população? Mas pra fazer isso, tem que ter uma mensagem clara para a população, um estado maior, um comando centralizado no país. Tem que ter uma visão global, macroscópica de que o problema não é só microbiológico, é econômico, social, que atinge todos os aspectos de nossa vida. A ciência tem essa visão macroscópica. O método científico nos ajuda a pensar dessa maneira multidimensional e criar novas soluções.

Uma preocupação enorme para mim, é que li no Lancet, uma das maiores revistas científicas, uma publicação de ontem a tarde, dizendo que o vírus sobrevive nas fezes das pessoas infectadas até trinta dias depois que elas não têm mais o vírus nas vias respiratórias. Agora, pare para imaginar num lugar como o nosso querido Brasil, onde o saneamento básico não chega na maioria da população, o que esse dado, se for confirmado, uma sobrevivência de quase um mês em mais de 40% desses pacientes, qual é a implicação disso.

Sem essa abordagem multidisciplinar, e sem uma cultura de guerra, que foi adotada na Espanha, na Itália e nos EUA, mesmo que tardiamente, fica difícil porque não se leva a coisa tão a sério como deve ser levada.

Vemos que países com governos de facetas mais autoritárias questionam muito a ciência. O exemplo mais comum é o negacionismo em torno da mudança climática e, agora, em relação ao corona vírus. Porque o senhor acha que isso está ocorrendo agora?

Veja que esse pequeno pacotinho de proteína e gordura com uma fileira de RNA no meio expôs toda a fragilidade do nosso modelo civilizatório que a nossa espécie impôs ao mundo nos últimos 250 anos. É como ter um elefante suspenso por algumas cartas de baralho. E o vírus foi lá, derrubou umas cartas e o elefante despencou. Este é basicamente o fulcro da questão que vai ter que ser levado em conta depois da fase aguda da pandemia.

Mas o que você está dizendo é demonstrável. Todos os países que negaram a ciência, nao deram ouvidos a seus sanitaristas (Itália, Espanha, EUA e agora o Brasil), estão pagando um preço caríssimo. Eu estava na Itália, quando o ministro da Saúde do país foi à RAI para tirar sarro do vírus na TV pública italiana para todo mundo ver. A mesma coisa nos EUA, o presidente Trump não levou a sério. Os EUA têm o maior instituto de ciências biomédicas do sistema solar. São US$ 35 bi por ano só para pesquisa básica. O líder, doutor Fauci, que todos conhecemos como um ícone americano, alertou o presidente no final de janeiro que a coisa ia ser assustadora e o presidente não acreditou.

Os EUA vão ter um cataclisma, em termos de mortes, histórico para o país. Eu estou em contato com meus filhos, com meus colegas cientistas americanos, eu estou há 32 anos lá, e as pessoas estão em choque, elas não acreditam no que está acontecendo. E isso vai acontecer aqui. As pessoas vão entrar em choque porque não têm ideia da dimensão.

A gente está vendo uma subnotificação de dez a doze vezes dos casos, isso é um número que foi publicado nos últimos dias. Nós temos um modelo de simulação matemática para o nordeste que deve estar pronto amanhã. Eu olho para esses números e não consigo dormir, porque eu vejo que esses números, não só de casos, como a distribuição de leitos de enfermaria e de UTI pelos estados do Nordeste mostram claramente a tsunami que está vindo.

Então, é muito importante que a mensagem seja clara e os jornalistas têm um papel fundamental de disseminar o que é real, verdadeiro e cientificamente comprovado, para que a gente possa vencer, também, a segunda tsunami, que na minha entendimento, é a batalha da comunicação. Nós estamos inundados de notícias falsas, sem fundamento científico, pessoas prescrevendo drogas que não têm nenhum tipo de ação demonstrada. A função do jornalismo nesse momento é quase tão vital como a tentativa de achar um medicamento, de achar uma vacina, nesse momento.

Temos visto muitos estudos apontando que o período que vamos ter que enfrentar o covid-19 pode ser mais longo do que imaginávamos. Imaginávamos que depois de julho tudo estaria mais tranquilo. Porém, muita gente diz que esse cenário deve estar muito presente nas nossas vidas pelos próximos meses. Qual a sua previsão sobre isso?

Nós vamos enfrentar no Brasil, com a chegada do inverno, o que a gente chama nos EUA de “perfect storm”, a tempestade perfeita, porque é a convergência dessa explosão de casos de covid-9, com casos de gripe normal que sempre tem, sazonalmente, e vamos ter casos de dengue e chicungunha, contribuindo para a saturação do sistema de saúde. Então, o caso brasileiro começa realmente complicar e ficar sério a partir de agora. Ele já está sério e tem um número de mortes provavelmente muito maior do que os números oficiais, talvez da mesma ordem do número de subnotificação dos casos.

Não sei se vocês viram, ontem, mas a maior revista americana de ciência, a Science, deu destaque a um estudo dizendo que a coisa não vai ser tão simples. Primeiro que não vai ser uma onda só, segundo que os cientistas falam de uma problemática que vai se estender até 2022 ou até a gente ter uma vacina efetiva que se espalhe pelo mundo.

Isso aconteceu em 1918, em que o vírus saiu do oeste do Kansas, ninguém ligou muito, porque o país estava no meio de uma guerra, a primeira onda foi um vírus menos letal. Mas aí o vírus foi pra Europa com os soldados, contaminou todo mundo lá e, na segunda onda, os soldados voltaram com um vírus muito mais letal. Só que os políticos da época, da Filadélfia e de Nova York, porque estavam no meio da guerra e morriam de medo da população saber os dados, não anunciaram. Não disseram pra todo mundo que os soldados estavam voltando num estado muito grave e contaminaram a população civil.

Então, os erros de 1918 não podem ser repetidos, cem anos depois. Nós aprendemos muito em cem anos. A ciência tem muito a dizer. Nós vamos ter múltiplas ondas e o vírus provavelmente vai virar endêmico e nós ainda não temos uma vacina. Então, a discussão de quando vamos sair da quarentena é prematura. No Brasil, nós não temos essa perspectiva clara. Nós podemos ter que ficar nesse estado até julho, porque vamos ter essa confluência de múltiplas doenças que são conhecidas. Um amigo meu, um jovem epidemiologista do Ceará, me mostrou claramente os dados de que essa temporada de influenza começa lá no Ceará e se espalha. Já começou! O Ceará já está tendo o começo dessa onda sazonal. Então, a metáfora da tsunami é muito literal, não é exagero, não. E os modelos matemáticos mostram isso, claramente.

Como o senhor analisa os erros e acertos principais das ações que estão em andamento aqui e qual o papel que o distanciamento sócia tem neste momento?

O distanciamento social é vital. Sem o distanciamento social que estamos fazendo, e até mais do que estamos fazendo… Vamos fazer recomendações nesse sentido aos governadores do Nordeste, em breve. Sem esse distanciamento social, sendo mantido e ampliado, nós vamos viver uma tragédia nunca vista na história do Brasil. Eu não quero viver isso. Não quero olhar pela janela e ver pessoas caindo pelas ruas, então precisamos ter a consciência de que o mundo inteiro está preconizando isso. Para o prefeito e o governador de Nova York fecharem a cidade do que jeito que fecharam, é porque eles entenderam a mensagem. Entenderam que a biologia vai ganhar de goleada se a gente não parar para pensar.

Por outro lado, é óbvio e infelizmente, o Brasil está sendo considerado no mundo o inimigo público número um da pandemia. Por causa da falta de uma mensagem clara, centralizada, objetiva e direcionada a toda a população, com absoluta transparência e clareza para que a população toda siga numa única direção. Você não ganha uma guerra sem estado maior e sem uma mensagem unificada e uma sociedade que se comporte de maneira homogênea frene ao inimigo. Esse é o grande erro.

Outra é preconizar o  uso de drogas que não foram testadas cientificamente, não tem efeito determinado, e está levando as pessoas a morrerem nas suas casas por automedicação. A França, a Suécia, países altamente desenvolvidos, – eu pertenço à Academia Francesa de Ciência -, a primeira coisa que falaram lá é que não pode prescrever drogas que não aprovamos. Porque vamos ter efeitos colaterais gravíssimos. Vamos ter gente com parada cardíaca irreversível em suas próprias casas.

É uma sequencia de subestimações. Se a gente for olhar para trás e vermos como subestimamos o inimigo, é assim que países perdem guerras. Olhem para França contra a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, olhem para o Japão atacando Pearl Harbor, sem ter a menor ideia da máquina industrial que os EUA tinham. Enfiam, subestimar o inimigo é a primeira receita para perder uma guerra. E nós fizemos isso em todos os domínios.

Ainda dá tempo de salvar a maior parte das pessoas. Mas se a gente não começar já. Se as pessoas que mandam, que assinam coisas no Brasil, não pararem, derem um cavalo de pau, e reverterem em 180 graus as suas ações e comportamentos e falarem: Ok, a prioridade aqui é salvar vida de brasileiros. A economia, a gente revive depois, aqui é um país rico, cheio de talentos, tem a possibilidade de alimentar o mundo. A econômica deixa pra depois.

Vamos jogar dinheiro no SUS, que foi destituído de seus recursos necessários. O sus é a nossa primeira linha de defesa. É a melhor coisa que o Brasil fez na história de saúde pública. Os EUA não têm o SUS e está padecendo que nem o cão. É só olhar para a situação de Nova York.

Então, temos que fortalecer o SUS e jogar o dinheiro que for necessário nele. Porque temos que atacar o inimigo onde ele ataca a gente. Na casa das pessoas, nas comunidades, nos bairros. Não podemos esperar que a situação chegue aos hospitais terciários os casos inundarem as UTIs. Temos que ir lá na frente. Criar uma linha intermediária sanitária de defesa, centros intermediários médicos que podem tirar a pressão dos grandes hospitais e cuidar dos casos lá na frente.

Pra isso, a gente tem que monitorar e nós no nosso consórcio criamos uma ferramenta digital chamada Monitora Covid-19, e temos uma sala de situação que vai entrar no ar hoje. De tal sorte que as pessoas podem digitar no seu telefone o que elas estão sentindo e a gente vai começar a ver no mapa do Nordeste onde estão os casos leves, onde estão os casos graves e podemos direcionar recursos humanos, insumos e falar para essas pessoas para onde elas podem ir. Ou seja, é uma integração de tecnologia, conhecimento e ação no campo, na trincheira.

Veja a entrevista aqui.

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