Não há contradição entre preservar vidas e a economia

O impacto da pandemia global causada pelo novo coronavírus na economia nacional e as medidas a serem tomadas foram discutidas pelo economista Antonio Corrêa de Lacerda.

Economista AntonIo Correa de Lacerda explica a importância do estado investir em momentos de crise

Presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e diretor da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FEA/PUC-SP), ele falou, nesta quarta (1) sobre o tema ao Sindicato de Engenheiros do Estado de São Paulo (SEESP). O economista deixou claro que não há contradição em preservar vidas e a economia.

Lacerda destacou, à abertura, que essa é “uma das maiores crises, talvez a maior, da nossa história, sem precedentes”. “As saídas clássicas no combate à crise têm a participação do Estado, que detém o monopólio da emissão de moeda e dívida.” Segundo ele, muitas vezes se comparam erroneamente os orçamentos doméstico e do Estado. Contudo, como explicou, enquanto no primeiro caso há limitações, já que as famílias não têm a capacidade de emitir moedas e títulos de dívidas, essas veem-se na obrigação de cortar gastos. Já o Estado tem que fazer o contrário: “Seu papel é anticíclico. Precisa ser mais ativo, gastar mais com programas sociais, de apoio a empresas e aos cidadãos. Cada real gasto deve representar dois, três reais destinados à atividade econômica, ou seja, acaba voltando para o Estado na forma de impostos. E se cortar gastos, vai aprofundar a crise.”

Sob essa lógica, de acordo com Lacerda, é mister “prover imediatamente recursos à saúde”, numa preparação para o aumento da demanda em assistência médica. Ademais, o Estado tem que garantir renda a pessoas menos assistidas, como os milhões de brasileiros que estão no mercado informal, os mais pobres e os que, mesmo na formalidade, estão afastados da atividade por conta do isolamento social. Nesse caso, enfatiza: “Tem que complementar o pagamento das empresas. O Estado tem essa capacidade de geração de renda.”

Para ele, a economia já colapsou e depende dessas medidas a retomada no pós-crise. A estimativa é que o Produto Interno Bruto (PIB) caia de 2% a 6% este ano. “O Estado pode emitir títulos da dívida e colocá-los no mercado para vender (para ampliar recursos). Se não fizer isso, será o caos econômico e social. Vai aprofundar a recessão.”

Questionado se seria o caso de utilizar reservas cambiais, Lacerda salientou: “É viável, mas não recomendável, pois corre-se o risco de ficar sem esse seguro, que deve ser preservado para outros compromissos.”

Houve a dúvida se aumentar a emissão de moedas não implicaria elevação da inflação. O especialista disse que sim, mas que é improvável que ocorra, “porque estamos diante de uma recessão”. E explicou: “Há queda global do preço de commodities, então já vem deflação de fora”. E a queda da renda da população repercutirá no preço dos serviços. A percepção de aumento de preços, a despeito disso, ocorre, como enfatizou, diante de movimentos especulativos ou provocados pelo aumento de custos diante da queda de demanda. Para conter isso, “tem que funcionar o combate a abusos e a regulação pública”. Conforme ele, de todo modo, a maioria dos países prefere emitir dívidas. 

Preservar vidas

Ele também foi questionado sobre isolamento e suas formas, como o vertical, defendido pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Ressaltando que essa é questão não de economia, mas de saúde pública, Lacerda observou a importância de atender as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) neste momento. “Em todos os países e cidades que tentaram antecipar a volta à normalidade, o número de casos explodiu. Exemplo é Milão [na Itália], em que o número de mortes é muito significativo, e o prefeito pediu desculpas pela iniciativa. Infelizmente perderemos muitas vidas e essas são o bem maior, devem ser preservadas. Quanto ao isolamento vertical, não parece eficaz e é difícil de ser implementado. O vírus se propaga coletivamente. Sobre [o argumento de] prejuízo econômico, daí vem a importância da ação do Estado.”

Ele reiterou, nessa direção, a importância de se garantir políticas compensatórias, renda básica aos setores mais vulneráveis e complementar a renda do trabalhador e empresas. Lacerda lembrou que foi aprovado pelo Congresso – e sancionado com vetos pelo Presidente nesta quarta-feira, dia 1º/4 – o auxílio de R$ 600,00 aos mais necessitados, que deve alcançar 58 milhões de brasileiros. “É bem longe do ideal, que seria no mínimo um salário mínimo, mas, juntamente com o Bolsa Família e outros programas sociais, pode amenizar os efeitos das perdas sobre a renda da população enquanto essa situação durar.” Além disso, o prazo para as pessoas começarem a receber – 16 de abril – precisa ser revisto, como frisou. “É necessário agilizar o processo.”

Lacerda lembrou ainda que há, na cidade de São Paulo, 30 mil moradores de rua que vivem das sobras de restaurantes e da doação de pessoas – o que caiu muito neste momento. “O Estado tem que garantir acesso a renda para essas pessoas também, para que possam comprar sua comida e produtos de higiene.”

Realidade também apontada por ele é que deve aumentar ainda mais a taxa de desemprego – que já se situa em 11,5 milhões de trabalhadores, número que somado aos desalentados e subutilizados salta para 27 milhões de brasileiros. “Isso vai agravar o problema social. Portanto, é muito importante que os sindicatos negociem [com o patronato] a estabilidade no emprego.”

Outra ação necessária é a intervenção do Banco Central à redução da taxa de juros, inclusive ao tomador final. “O mercado financeiro é dominado por cinco bancos que detêm 85% do crédito. As taxas são muito elevadas.”

Mais Estado

Por fim, reiterou: “A retomada da economia, talvez no segundo semestre deste ano, vai depender do período de isolamento e sobretudo do sucesso ou não da implementação de políticas públicas.” E concluiu: “É preciso sepultar de vez a ideia do Estado mínimo, cuja deterioração [dos serviços essenciais] como consequência se torna mais evidente agora e expõe a todos. Veja as políticas globais de assistência à saúde. Aqui felizmente temos o SUS [Sistema Único de Saúde], mas está prejudicado, assim como a educação, que pressupõe pesquisa e desenvolvimento. Houve bolsas canceladas pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] neste momento, o que é um grande erro. O corte de gastos públicos se volta contra a sociedade. Estamos pagando com muitas vidas.”

Organizador do livro “O mito da austeridade” (Editora Contracorrente), Lacerda desvelou assim a falácia da “austeridade como panaceia”. E complementou: “É preciso preservar as políticas públicas industrial, comercial, de ciência e tecnologia. Ter um projeto nacional de desenvolvimento com objetivos estratégicos de longo prazo e investimentos em infraestrutura, educação, reformas agrária e tributária adequadas, qualidade na gestão pública, mais voltada para o ser humano.”

Na sua opinião, a classe média deve perceber que “privatizar” os serviços que deveriam ser públicos, botando filhos em escolas particulares e contratando convênios médicos para ter melhor atendimento, não passa de ilusão. Numa crise, provavelmente terá empobrecimento e não poderá manter o mesmo padrão de vida. “Deve exigir dos governos a garantia de saúde, educação, moradia para todos.”