Consequências do confinamento para as mulheres

No país em que 7 a cada 10 vítimas de feminicídio são mortas dentro de casa, permanecer segura no próprio lar é mais um desafio do isolamento

Violência doméstica se agrava durante confinamento da Covid-19. Foto de Marcello Casal Jr/Agencia Brasil

Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a pesquisadora em Ciências Criminais da PUC-RS, Domenique Goulart, observa que, durante a quarentena imposta para reduzir o avanço da epidemia de Covid-19, houve o agravamento de problemas sociais já intensos antes da pandemia, sendo que as mulheres com consequências específicas.

“Em uma sociedade que discrimina as mulheres, o gênero acaba sendo um fator de radicalização das formas de violência e de desigualdades que recaem sobre as mulheres e os corpos feminizados em epidemias”, diz ela.

Assim, ela não se surpreende que as mulheres estejam sendo as mais afetadas pelos cenários vários que se instituem em tempos pandêmicos de Covid-19. “Não se trata de problemas ditados pelo vírus; algo imposto por sua natureza, mas sim do escancaramento e do aprofundamento das desigualdades sociais já existentes, colocando com escárnio à nossa frente o modo de vida que temos escolhido e assentido naquilo que consagramos como normalidade”, ressalta.

Domenique salienta que as históricas e discriminatórias distinções entre funções públicas e privadas a partir do gênero implicam nos tipos de profissões desempenhadas por homens e mulheres, fazendo com que estas ocupem majoritariamente funções responsáveis pelo cuidado de pessoas, tanto profissional quanto informalmente. É o que revelam dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), de que as mulheres são a linha de frente no Brasil: nas funções de enfermagem, auxiliares e técnicas de enfermagem, a média é de 6 mulheres para cada homem.

Divórcios e mais violência doméstica

Domenique continua seu artigo pontuando os impactos diretos da quarentena contra o Covid-19 na vida das mulheres de todo o mundo. Na China, país de origem do vírus e primeiro epicentro da pandemia, foi registrado um número recorde de pedidos de divórcio, o que indica, em sua opinião, que a situação de enclausuramento domiciliar gera um aumento dos conflitos conjugais.

Ela constata que a estratégia de confinamento orientada pelas autoridades sanitárias vem criando condições de aumento exponencial da violência doméstica, conforme já constatado por registros na China e no estado do Rio de Janeiro. As ligações para o Disque 180 aumentaram em 9% e, na Baixada Santista (SP), a procura ao abrigo para mulheres em situação de violência triplicou.

E, diante de fechamento de escolas e creches, sendo as mulheres as mais responsabilizadas pelos serviços domésticos e por cuidados de crianças e idosos, como conciliar o home office estabelecido por muitas empresas? “Como as trabalhadoras informais sustentarão a si e a suas famílias com as necessárias medidas de restrição?”, indaga a pesquisadora.

“Se em condições ‘ordinárias’ de relações de trabalho as mulheres mães sofrem sobremaneira com o assédio moral dentro de seus empregos, sendo não raro constrangidas em razão de cuidados com crianças e demandas doméstico-familiares, o que virá agora, quando o espectro domiciliar se apresenta indissociavelmente mesclado ao laboral?”

Trabalho reprodutivo

Domenique se pergunta como será gerida a crise financeira quando casa e trabalho recaem sobre o mesmo espaço físico e às costas das mulheres é que se joga socialmente o oneroso trabalho reprodutivo. “São as mulheres que primeiro sentem na própria pele os impactos da ausência de recursos e as consequências do endividamento, deixando de se alimentar para dar de comer às suas crias. A urgência dos dilemas postos entre inanição ou exposição ao vírus, demissão ou gestão familiar, são acentuados pela responsabilização das mulheres pelo exercício do trabalho emocional ligados ao cuidado e à administração do lar”.

Nesse contexto de drástico aumento de exposição de mulheres a situações de violência, estarão confinadas com seus agressores e precisarão, mais do que nunca, da rede de enfrentamento de violência doméstica, com atendimento de Centros de Referência, casas de abrigamento e Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres.

A ONU Mulheres também alerta que em situações de epidemia as mulheres costumam ter limitados ou negados seus direitos sexuais e reprodutivos, pois os recursos destinados a essa área costumam ser redirecionados às demandas da epidemia, aumentando número de abortos clandestinos e inseguros, acarretando, portanto, a morte evitável de muitas mulheres, em sua maioria pobres e negras. A pesquisadora confirma isso ao observar que, no Brasil, o maior serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual do país, do Hospital Pérola Byington (SP), foi fechado. A interrupção do serviço conhecido por realizar a maior quantidade de abortamento legal, principalmente em caso de gravidez por decorrência de estupro, representa grave ataque aos direitos das mulheres, principalmente em razão do potencial aumento de violência sexual a que as mulheres estarão assujeitadas nesse momento de reclusão. Por pressão popular, o serviço voltou a funcionar no dia 30/03/2020.

“Não é o vírus que impõe o esgarçamento radical dos laços, a ponto de esfacelá-los completamente, tampouco é ele que decide quais serviços se manterão abertos ou serão fechados. Alocar recursos suficientes para saúde, assistência e seguridade social, conceder renda básica de auxílio emergencial digna às populações, garantir dimensões de gênero, raça e classe nas respostas sociais de gestão à crise, são exemplos de medidas mínimas que dizem respeito a como sujeitos e Estados podem se ressolidarizar e, assim, tecer novos mundos possíveis”, conclui ela.