Bolsonaro e o papel da imprensa, por Juca Kfouri

Quando as duas tempestades passarem, a bolsominion e a do coronavírus, será preciso seguir em frente com o jornalismo vigilante, crítico, doa em quem doer

Está provado cientificamente que o papel de imprensa, por poroso, não significa risco de contaminação pelo coronavírus. Não obstante, recomenda-se lavar as mãos depois da leitura, como é recomendável várias vezes ao dia. Está também provado socialmente que o papel da imprensa segue intacto nos duros tempos vividos por todos nós – apesar dos vaticínios tresloucados de quem deveria governar o Brasil e se transformou, digamos, numa rainha da Inglaterra, ignorado pelos governadores e pela maioria do povo brasileiro.

“Vocês são uma espécie em extinção. Acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”, declarou Jair Messias Bolsonaro em janeiro último.

Curioso, o miliciano que mora no Palácio da Alvorada. Ainda antes de ser eleito, com apoio da maior parte dos meios de comunicação, ele desdenhava do jornalismo certo de que seus seguidores nas redes antissociais eram suficientes para conduzi-lo ao trono e revelar a verdade, aquela, só aquela que o libertará, como ele gosta de papaguear (João 8:32).

Com evidente dificuldade na arte da leitura – basta observar o tatibitate de seus pronunciamentos lidos –, Bolsonaro cai em contradição permanente ao desdenhar do jornalismo ao mesmo tempo em que o critica sempre que abre a boca que deveria manter fechada para não dar bom dia a cavalo.

Detesta esta Folha, não lê esta Folha, proíbe esta Folha, mas não passa um dia sem citar… esta Folha. “Por si só esse jornal se acabou. Não tem prestígio mais nenhum. Quase todas as fake news que se voltaram contra mim partiram da Folha de S.Paulo”, disse ao Jornal Nacional em outubro de 2018. Pois não é que o diário que “acabou” segue como alvo cotidiano do ódio presidencial?

Com o que chegamos à conclusão de que além de complexo de perseguição, o presidente que ninguém obedece, nem a extrema-direita em quarentena, acredita em fantasmas. E em que o inferno são os outros.

Porque em outubro de 2019 foi a Rede Globo que entrou em sua mira, ao acusá-la em pronunciamento feito na Arábia Saudita, com a educação que o caracteriza: “Vocês, TV Globo, o tempo inteiro infernizam a minha vida, porra!”. Mas a mamata não havia acabado? A Globo não é um zoológico dos tais “animais em extinção”? Como sobrevive, como incomoda tanto?

O melhor termômetro do desempenho de qualquer veículo é quando causa 42 graus na raiva dos poderosos, porque jornalismo é oposição, não um armazém de secos e molhados, como dizia Millôr Fernandes. Neste tempo entre parênteses, expressão usada com tremenda felicidade por Sérgio Rodrigues para definir estes dias de isolamento, conforta-nos ver a imprensa ativa e constatar a ressurreição da Associação Brasileira de Imprensa, a ABI, em defesa da democracia, da liberdade de expressão e da sensatez.

Claro que sempre tem o outro lado, e é bom que assim seja. Porque você tem desde o jornalista cuja visão de mundo o leva a dar piruetas para defender o indefensável até o sabujo que faz pó de sua biografia. É do jogo.

Quando as duas tempestades passarem, a bolsominion e a do coronavírus, será preciso seguir em frente com o jornalismo vigilante, crítico, doa em quem doer. E quem o acompanhar deverá ter sempre a medida de que bajular não é vocação da imprensa. Até quem você gosta precisa ser criticado.

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo

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