Olhando o SUS, para além do coronavírus, por Julia Roland

Medidas em defesa do SUS devem ser acompanhadas da revogação da EC 95, pois o teto de gastos é mortal para a saúde do povo

Recentemente, uma mulher que viajou para o exterior foi diagnosticada com o coronavírus em clínica particular do seu plano de saúde em Brasília. Ela faz parte do chamado grupo de risco, seu estado era grave e necessitava de cuidados de UTI. Mesmo tendo plano de saúde, a clínica alegou não ter condições de mantê-la em isolamento e a paciente foi transferida para um hospital do SUS (Sistema Único de Saúde).

Essa pandemia, em fase inicial no Brasil, vai exigir muito do nosso sistema público, que, em outras situações semelhantes, enfrentou os problemas com êxito. Apesar dos inúmeros méritos, será inevitável que as insuficiências do SUS se destaquem na crise que se aproxima. O subfinanciamento crônico da saúde pública, permanentemente denunciado pelos defensores do SUS, teve sua condição agravada com a Emenda Constitucional (EC) 95, que impôs, em 2017, um teto para os gastos sociais por 20 anos.

A mesma deficiência – a insuficiência de recursos – atinge a cidade de São Paulo e seus mais de 12 milhões de habitantes. Sua rede pública de saúde, a maior do País, conta com 458 UBSs (unidades básicas de saúde), 175 unidades de saúde mental, 34 unidades de saúde bucal, 38 unidades de reabilitação, 28 unidades de vigilância em saúde, 47 unidades de atenção especializada ambulatorial, 20 hospitais gerais com mais de 11 mil leitos hospitalares e 39 prontos-socorros. Além disso, são mais de 80 mil profissionais, distribuídos em mais de 900 equipamentos.

São Paulo vive uma transição demográfica, com baixas taxas de natalidade e mortalidade – o que leva ao envelhecimento da população. Como tudo na metrópole, isso ocorre de forma desigual entre as regiões. Assim, as áreas centrais têm mais idosos e as regiões da periferia, mais crianças.

O IDH (Indíce de Desenvolvimento Humano) evidencia a qualidade de vida desigual entre os bairros da cidade. Se em Moema o IDH é 0,934 (elevado), em Marsilac ele cai para 0,604 (baixo). Com os indicadores de saúde, não é diferente: a mortalidade infantil em Pinheiros e Vila Mariana é de 5,6 por mil nascidos vivos. Já em Guaianases, vai para 17,7. Com relação às gestantes, 94,3% realizam pré-natal em Pinheiros, com as sete consultas necessárias. Em São Miguel, o número cai para 66%.

A capital paulista enfrenta hoje o que é chamado pelos epidemiologistas de uma “tripla carga de doenças” (inúmeros casos de dengue, sarampo e desnutrição). Tem lacunas na saúde reprodutiva, como o pré-natal e a assistência ao parto. Apresenta crescimento de doenças crônicas, como hipertensão arterial, diabetes mellitus, acidente vascular cerebral e o câncer. Além disso, verifica ampliação de agravos pelo crescimento da violência, tanto no trânsito quanto interpessoal. E é o SUS que tem de responder a essas condições!

Historicamente, a saúde em São Paulo sofreu com as sucessivas mudanças de governos municipais. Cada novo governante tentou criar soluções mágicas, com marcas próprias, alardeando o fim de problemas vivenciados cotidianamente por usuários do SUS. Assim tivemos iniciativas como o PAS, os Amas e o Corujão da Saúde.

Mas, não dá para realizar milagres à base de choques de gestão, nem para resolver todos os problemas. Cada nova gestão não pode fazer de conta que vai partir do zero, ignorar o que vem sendo construído – o acumulado ao longo do tempo – e querer fazer tudo diferente. O SUS é uma política de Estado, é patrimônio do povo brasileiro e assim tem de ser considerado por qualquer governante. É indispensável dar continuidade ao processo de construção do sistema.

Nesse sentido, apresentamos três sugestões que podem fazer avançar a construção do SUS em São Paulo. Em primeiro lugar, fazer funcionar bem a rede instalada, completando o quadro de pessoal, dotando-a de equipamentos, insumos e medicamentos necessários. O Poder Público tem de concluir os hospitais iniciados e reformar as unidades básicas em condições precárias.

É essencial cuidar da cidade com equidade para superar as desigualdades reveladas pelos indicadores de saúde da população, dando prioridade para as regiões periféricas e mais pobres. Com tantos equipamentos e trabalhadores, o grande desafio da Secretaria Municipal de Saúde é imprimir resolutividade na sua estrutura e equilibrar a oferta de serviços atendendo às necessidades dos milhões de habitantes paulistanos.

Para isso, é essencial fortalecer a administração, contratando gestores por concurso público para áreas técnicas. Atualmente, mais da metade da rede pública está sob gestão das Organizações Sociais (OSs), sendo, portanto, inadiável dotar a secretaria de capacidade de acompanhar e fiscalizar a implantação do que foi contratado para cada território, com a participação da população, por meio dos conselhos locais de saúde.

Para que haja uma ação sinérgica entre gestão pública e controle social, é indispensável investir na capacitação de conselheiros de saúde e gestores, sob a ótica da importância da gestão participativa. Sem uma ativa participação da população – tomando em suas as mãos a bandeira da defesa do SUS e exigindo financiamento adequado dos governantes, em especial do governo federal, que tem diminuído, relativamente, sua participação e compromisso dos gestores com a saúde pública –, não realizaremos plenamente os princípios inscritos na Constituição.

Em segundo lugar, é fundamental, retomar o processo de descentralização da Secretaria de Saúde. Numa cidade das dimensões de São Paulo, temos de fortalecer as coordenadorias e supervisões regionais, para que elas assumam de fato o planejamento e a gestão das ações de saúde em seu território.

Por último, é necessário estabelecer uma adequada governança com a gestão estadual, para alcançar integração política e funcional entre as duas redes e melhorar o atendimento aos usuários do SUS. Cerca de 60% da atenção especializada e de alta complexidade é realizada pela rede estadual. Dos mais de 17 mil leitos do SUS presentes na capital, aproximadamente 11 mil são da Secretaria Estadual de Saúde.

Embora 40% da população tenha plano de saúde, é muito comum que, na urgência e emergência, muitos recorram às unidades do SUS. Por isso, temos de estabelecer instrumentos adequados para que as operadoras de saúde façam o ressarcimento desses atendimentos. Na capital, mais de 66% dos atendimentos de urgência/emergência são realizados pela rede pública municipal.

Na relação com a Secretaria Estadual de Saúde e os demais municípios da Grande São Paulo, é preciso estabelecer o papel de cada um dos 39 municípios da região metropolitana. Que se construa um programa de gestão da saúde regional, com metas, definição de responsabilidade e financiamento adequado.

Além de atuar para superar os problemas da Rede de Atenção à Saúde, cabe ressaltar a necessidade de interferir nos determinantes sociais da saúde, como desemprego, educação, condições do meio ambiente, saneamento básico, coleta de lixo e enchentes. Ações intersetoriais com todas essas áreas devem ser estabelecidas, envolvendo também os governos federal e estadual, a fim de melhorar as condições de saúde e a qualidade de vida na cidade de São Paulo.

Tais condições de saúde estão agora ainda mais ameaçadas pela pandemia em curso. Além das medidas básicas na área da prevenção, o coronavírus exigirá ações emergenciais. É urgente fortalecer a capacidade assistencial do SUS, com ampliação dos leitos hospitalares, principalmente os leitos de UTI, a exemplo do que fez a China, que hoje já registra regressão da epidemia. É fundamental dotar o sistema de saúde de plena capacidade de realizar com agilidade o exame para detecção do vírus e garantir estoque necessário de medicamentos retrovirais para os casos graves.

Todas essas medidas, entre outras, devem ser acompanhadas da revogação da EC 95, mortal para a saúde do povo, e não apenas no quadro de crise. Sem investimento massivo e permanente, a saúde em São Paulo, assim como no restante do país, não corresponderá às necessidades da população.

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