Dois anos depois, um novo atentado contra Marielle

Pessoas próximas a Marielle e Anderson terão que continuar na batalha para que o crime não fique impune. Não é dado a elas o direito de sofrer em silêncio.

Marielle Franco - Pestana

Por causa da pandemia do coronavírus, as atividades para marcar os dois anos da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no sábado 14, não puderam acontecer nas ruas. Pior do que não transformar a pergunta “quem mandou matar Marielle?” num mantra de indignação coletiva, foi descobrir que poderá nunca haver uma resposta oficial.

Reportagem de Chico Otavio e Vera Araújo, no jornal O Globo, relatou que ganha força, entre policiais e promotores que atuam no caso, a tese do crime sem mandante. Ronnie Lessa, sargento reformado da Polícia Militar fluminense, teria cometido o assassinado por ódio a Marielle e outros que militam na defesa dos direitos humanos. Ele está preso na penitenciária de Porto Velho, em Rondônia, juntamente com Élcio de Queiroz, ex-sargento (expulso da PM) acusado de ser seu cúmplice.

A tese é um acinte. Foi por sua atuação em milícias e por ser um exímio atirador que Lessa enriqueceu. Tem duas casas geminadas no condomínio Vivendas da Barra, vizinhas à de Jair Bolsonaro. O imóvel está avaliado em R$ 1,25 milhão. Ainda possui, entre outros bens, um terreno avaliado em R$ 500 mil, num condomínio de luxo em Angra dos Reis, e uma lancha de R$ 450 mil. Quando foi preso, em 12 de março de 2019, havia na sua casa R$ 61.293 em dinheiro vivo. Tudo foi sequestrado pela Justiça.

Ele perdeu a perna esquerda em 2009 num atentado que a polícia arquivou como assalto malsucedido, apesar dos fortes sinais de ter sido uma tentativa de queima de arquivo. Lessa escapou uma vez da morte, tem dois filhos e acumulou patrimônio. Atuava em organizações que envolvem muitas pessoas e interesses.

Por que decidiria dar uma de “lobo solitário”, como parte dos investigadores defende, segundo a reportagem do Globo? Por que assassinaria uma vereadora só por não gostar dela e do político para quem ela trabalhou no passado (Marcelo Freixo, que presidiu a CPI das Mílicias na Assembleia Legislativa do Rio, tendo indiciado 226 pessoas)?

A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público querem que se acredite que Lessa agiu em nome de uma espécie de honra miliciana, mas sem ter apoio de outros milicianos. Polícia e MP estão provando, na verdade, o avesso disso: não apontam os mandantes porque significaria mexer com pessoas poderosas demais.

A família de Marielle sempre defendeu que a investigação permanecesse no Rio, embora polícia e milícia sejam quase sinônimos no estado. Explicaram isso ao ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, que concordou. Quando, por engano, o nome de Jair Bolsonaro apareceu ligado ao caso, Moro correu para pedir que a Polícia Federal assumisse a investigação. A família compreendeu a manobra e insistiu para que a história não saísse do Rio.

Na manhã do dia 14, nos dois anos sem Marielle e Anderson, seus parentes leram no jornal que uma grande pizza está no forno para que os mandantes não sejam revelados. Deve ser como uma segunda morte. Está marcada para o dia 31, no Superior Tribunal de Justiça, a decisão sobre a federalização do caso. É difícil saber, a esta altura, o que é pior, já que parece haver pouco interesse, no Rio e em Brasília, para que a verdade apareça. As pessoas próximas a Marielle e Anderson terão que continuar na batalha para que o crime não fique impune. Não é dado a elas o direito de sofrer em silêncio.

A dor que sentem essas pessoas, a integridade delas, de Marielle e de Anderson são os protagonistas do primeiro episódio de Marielle – O Documentário, que foi ao ar na TV Globo na quinta 12 e está disponível no GloboPlay. Detalhes das investigações estão em outros capítulos. A tese do “lobo solitário” não tem destaque. Não é uma série de ficção.

Publicado originalmente na Época

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