O imprescindível Augusto Buonicore

Sua obra radiografa a essência das contradições sociais, com artigos e palestras seminais, com paradigmas e equações para entender e explicar o que ocorre no mundo da atualidade.

O poema de Bertold Brecht que fala dos homens que lutam em diferentes gradações para concluir que há os imprescindíveis, aqueles que lutam a vida toda, foi feito sob medida para pessoas como Augusto Buonicore, falecido na quarta-feira (11). Ele lutou o quanto pôde e deixou um vasto instrumental para prosseguirmos com sua jornada. Claro, falta a batuta do maestro, mas podemos remediar a situação com a sua obra.  

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Algumas mensagens dizem que Augusto, com sua alma bondosa, foi recebido no céu com pompa e circunstância. Para quem professa a fé cristã, certamente o Augusto foi recepcionado pelo filho de Deus, naquele mandamento de que ninguém vai ao Pai senão por Ele. Eu tenho uma relação com Jesus Cristo como a de Voltaire, contada pelo cronista Humberto de Campos.

Diz ele que o príncipe dos homens sem fé, andando em uma rua de Paris acompanhado de amigos, deparou-se com uma procissão. Ao se aproximar do andor em que se erguia a imagem de Jesus Cristo, o filósofo, com seu sorriso discreto e irônico, levou a mão à cabeça e tirou respeitosamente o chapéu. “Que é isso?”, indagou um amigo, estranhando a atitude daquele ateu confesso. “Virou amigo de Jesus?”, completou. “Não”, respondeu o autor de “Cândido”. “Nós nos cumprimentamos, mas não nos falamos.”

O poeta Thiago de Mello, Osvaldo Bertolino, Fábio Palacio e Augusto Buonicore

Penso que a vida do Augusto segue em suas obras. Para quem o conheceu mais de perto, também por sua conduta exemplar. Ele era dessas pessoas que são mais conhecidas por suas ideias do que por qualquer outra coisa. Quando se fala de Augusto Buonicore, o que vem à memória são seus livros, seus artigos, suas palestras, suas entrevistas.

Augusto, com seu porte intelectual, nunca teve comportamento pedante, muito comum por aí. O famoso preconceito social; tratava a todos de modo igual. Não tinha a arrogância que vejo rotineiramente, muitas vezes de gente conhecida há décadas que fingem não estar vendo quem não é da sua conveniência social.  

Apesar de conhecê-lo razoavelmente bem desde os anos 1980, passamos a ter convivência constante a partir de 2008, quando foi constituída a Fundação Maurício Grabois. Assumi a função de editor do Portal Grabois, a convite do presidente da Fundação, Adalberto Monteiro, e ele a presidência do Centro de Documentação e Memória (CDM). Além do trabalho interno, participamos, juntos, de lançamentos de livros, de entrevistas e pesquisas.

Lembro, com nitidez, quando fomos a Campos do Jordão, na residência de Dynéas Aguiar – histórico dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) –, buscar seu arquivo, que ele doara ao CDM. Passamos um dia, os três, revisitando as memórias do visitado. No fim do dia, saímos de lá com o carro abarrotado de livros, jornais, folhetos e fotos, e com mais uma dose razoável de conhecimentos.

Augusto falava pouco da sua vida, mas, com a convivência, nossas conversas foram se diversificando. Sempre preocupado com a filha, Clara, e a esposa, Sônia. Até o seu e-mail, que nunca trocou, mostrava esse carinho – soniaugusto@… Mas nossas conversas sempre acabavam em fatos da história, em especial a dos comunistas.

Ele dizia que o tempo era curto para escrever tudo o que pretendia. Mas produzia como poucos. E nunca houve, em sua vasta obra, palavras de significado vago. Augusto explicava ideias profundas com formulações que fazem o leitor entender as coisas facilmente. E abordando temas que muitas vezes são tratados de modo assustador.

De costas, Mariana (filha de Prestes), Augusto Buonicore, dona Maria Prestes e Osvaldo Bertolino. Na câmera, Felipe Spadari. Foto: Fernando Garcia

Ao mesmo tempo, seus textos têm o privilégio do pensamento sério e completo, em oposição ao discurso baseado em slogans e análises superficiais. Outra preocupação constante em seus escritos era mostrar que as teorias sociais científicas funcionam e são comprovadas pelos dados da realidade.

Alma do povo

Augusto remou contra a maré de um mundo sob controle político e econômico de um punhado de magnatas sem face e sem coração. Ele dizia que era preciso enfrentar esses tempos em que as pessoas não se dão mais ao desfrute de ler um livro ou assistir a um filme intelectualmente denso.

Vive-se, falávamos, no ritmo do fast food, num mundo em que o bem-estar social foi trocado pelo desemprego, pelo abandono, pela miséria gerada na competição que desce à mesquinharia do cotidiano. Nesse mundo de futilidades, que valida a baixa erudição como método de vida, Augusto embrenhava-se em matas densas sem perder a leveza.

É uma pena que seus escritos e suas palestras não tenham a divulgação merecida. Falávamos disso. É dura a vida de escritor no Brasil. Primeiro, é preciso ultrapassar a barreira do esquálido público que lê regularmente. Depois, vem uma barreira ainda mais cruel: o controle autoritário dos monopólios de mídia sobre a divulgação de ideias.

Está certo que a tecnologia vem facilitando o caminho rumo a uma informação mais ágil. Ninguém duvida do poder da multimídia como ferramenta interativa, com sons e efeitos que agradam a nossos sentidos. Nada pode substituir, porém, a leitura de bons textos.

Enfim, Augusto foi, antes de qualquer outra coisa, um conhecedor da alma do povo. E isso o difere, substancialmente, de quem ganha a vida montando frases de efeito. Sua obra radiografa a essência das contradições sociais, com artigos e palestras seminais, com paradigmas e equações para entender e explicar o que ocorre no mundo da atualidade.

Augusto não foi um propagador de ideias alheias. Sua produção é uma das raras fontes para quem busca conhecimentos para entender a realidade dos nossos dias. Por tudo, sua obra precisa ser visitada e revisitada. Por sua originalidade, pela seriedade e consistência das suas falas e dos seus artigos, porque escrevia muito bem.

Língua portuguesa

E isso também merece altos elogios. Quando se fala em redigir bem um texto não se pretende dizer que é necessário escrever com grande estilo ou saber métrica e fazer poemas. Trata-se apenas de usar instrumentos básicos para a comunicação. Textos absolutamente pobres de ideias e com frases, sentenças e orações desconexas, apoiadas nas muletas das palavras e jargões repetitivos, de cara perdem a importância.

Muitas vezes, o português se transforma numa língua inteiramente desconhecida de qualquer cidadão nascido e criado no Brasil – ou em outros países de língua portuguesa. Ou vocações literárias e evocações filosóficas são substituídas por narrativas simples e linguagem empobrecida.

O problema é que pouca gente pode reduzir o escrever bem a um ofício simples como pretendia o poeta chileno Pablo Neruda. ”Escrever é fácil. Você começa com letra maiúscula, termina com ponto final e no meio coloca as ideias”, dizia ele. A coisa não é bem assim.

O erro número um que a maioria das pessoas comete é escrever para si próprias — não para quem vai ler. Redigir um bom texto dá trabalho mesmo. Exige conhecimento, atenção, concentração, esforço, tempo, dedicação, treino. E paciência para começar de novo muitas vezes. O leitor dificilmente poderia imaginar a quantidade de energia e tempo gasta na feitura de um artigo como este que está lendo. Mas Augusto tirava tudo isso de letra.

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